
Nascido na cave da
Pembroke Books, uma livraria da Boston dos anos 60, Firmin aprendeu a ler
devorando as páginas de um livro. Mas uma ratazana culta é uma ratazana
solitária.
Marginalizado pela
família, procura a amizade do seu herói, o livreiro, e de um escritor
fracassado. À medida que Firmin desenvolve uma fome insaciável pelos livros, a
sua emoção e os seus medos tornam-se humanos. É uma alma delicada presa num
corpo de ratazana e essa é a sua tragédia.
Num estilo ora
sarcástico ora enternecedor, Firmin é uma história sobre a condição humana em
que a paixão pela literatura, a solidão e a amizade, a imaginação e a
realidade, fazem parte de um mundo que acarinhava os seus cinemas de reprise,
os seus personagens únicos e a glória amarelada das suas livrarias. Firmin é
divertido e trágico. Como todos nós.
Confesso que se não fosse um conselho de uma boa amiga, Firmin ter-me-ia passado ao lado e seria
uma enorme perda.

No entanto Firmin não é uma ratazana vulgar, é o mais novo
de uma ninhada de treze filhos de uma mãe que vai bebendo os restos das
bebedeiras humanas e que invariavelmente chega a casa bêbada. Sendo o mais
fraco, apenas lhe restam as últimas gotas de leite libertas do álcool ingerido
pela Mama. Talvez por isso ele, o renegado pela família, tenha encontrado nos
livros a fonte para saciar todas as suas carências.

Dia a dia ele vai alimentando o corpo e o espírito de
livros, ele come, lê e vive os livros. De uma abertura no tecto da livraria,
observa as pessoas que entram e saem e vai aprendendo a viver com elas, conhecendo
exactamente quais os gostos de cada um e os locais onde se encontra cada livro
que procuram. Sabe quais as categorias dos livros e viaja com eles, desde as
mais longínquas aldeias do globo terrestre aos locais mais ínfimos do corpo
humano.
"Nunca fui muito valente no aspecto físico, aliás nem em qualquer outro aspecto, e foi-me muito difícil aceitar a pura estupidez de uma vida vulgar, sem história, de modo que comecei bastante cedo a consolar-me com a ideia ridícula de que tinha um Destino. E resolvi viajar pelos livros, no espaço e no tempo, à procura dele. Com Daniel Defoe visitei a Londres da peste negra. Ouvi o sineiro gritar "Tragam cá para fora os vossos mortos" e cheirei o fumo dos cadáveres queimados. Continua entranhado nas minhas narinas.
(...)
Pus Baudelaire na jangada com Huck e Jim. Fez-lhe bem. E tornei algumas pessoas tristes mais felizes. Deixei Keats casar com Fanny antes de morrer.
(...)
Deixei os livros entrar nos meus sonhos e por vezes sonhei que eu é que estava nos livros. Tive a cintura de vespa da Natasha Rostova, senti a mão dela no meu ombro e dançámos os dois e, flutuando ao sabor da valsa (....)
Fui em tempos - apesar do meu porte desagradável - um irremediável romântico, esse personagem tão ridículo. E um humanista também, igualmente irremediável. E no entanto apesar - ou será por causa? - desses sentimentos conheci uma data de gente fabulosa, bem como uma data de génios, no decorrer da minha educação básica. Conversei com todos os Grandes.. Dostoievski e Strindberg por exemplo. Neles não tardei a reconhecer colegas de sofrimento, histéricos como eu. E aprendi com eles uma lição valiosa - por mais pequenos que sejamos, a nossa loucura pode ser tão grande como a de qualquer outra pessoa."
Através de uma linguagem simples, e na primeira pessoa,
vamos acompanhando o crescimento deste personagem que acredita no poder da
amizade e que busca a felicidade acima de tudo. O seu maior desgosto é não
conseguir comunicar com a espécie humana, essa espécie que ele vai aprendendo a
conhecer através da livraria, através de Fred Astaire e Ginger e das belas
mulheres dos filmes que vai assistindo no velho cine-teatro Rialto do outro
lado da praça, onde ele vai procurar o seu alimento. Ele sonha com Astaire, ele
vive pelos mundos dos livros que lê e ele desilude-se com a vida real fora das
paredes onde vive. O ser humano revela-se egoísta e mesquinho causando-lhe
sofrimento, levando-o a refugiar-se no sonho e nos livros. Ele apenas deseja
amar e ser amado intensamente.
Com Jerry, um escritor falhado, ele consegue ser feliz.
Entendem-se mutuamente nos seus gostos e nos livros que são a essência da vida
para ambos, e Firmin encontra nesse ser o reflexo da sua alma de camundongo num
ser humano. É a seu lado que vive os
melhores dias da sua vida, pois, segundo ele próprio, abandona o seu estilo de
vida burguês.
No entanto a vida é traiçoeira, mesmo para uma pequena
ratazana pacífica e cobra os seus preços. Todo o bairro onde se localiza a
velha livraria e o cine-teatro Rialto está inserido num programa de reforma
urbana, cujo projecto avança com a demolição de todas as construções
existentes. A pouco e pouco a vida vai-se escoando, não há visitantes, o cinema
encontra-se vazio e a comida escasseia.
Uma fábula divertida e dramática em que o autor nos oferece uma visão da condição humana, da solidão, do
desejo que todos temos em sermos reconhecidos como verdadeiramente somos, de
amarmos e de sermos amados. Através das suas reflexões Firmin predispõe-nos a
pensar nas nossas atitudes, nas nossas procuras e sobretudo naquilo que é o
Destino.
Muito bom.
Ilustrações de Fernando Krahn
Edição/reimpressão:2009
Páginas: 160
Editor: Editorial Planeta
ISBN: 9789896570019
