quinta-feira, 27 de março de 2014

Alice Munro e "Fugas"

Não conhecia esta escritora, nem o seu trabalho. No Natal passado uma amiga, ofereceu-me este livro e foi com alguma expectativa que o comecei a ler, muito embora não sabia o que iria encontrar.


Um pouco sobre a autora e a sua obra….

Alice Munro nasceu no Canadá em julho de 1931, desde muito nova (1950) iniciou a sua carreira como cronista, mas só a partir de 1976 consolida a sua carreira como escritora.
Foi por três vezes vencedora do prémio de ficção literária “Governor General's Literary Awards”, do seu país. Em 1998 Alice Munro foi premiada pelo National Book Critics Circle dos Estados Unidos, pela obra “O amor de uma mulher generosa”. Aos 82 anos foi galardoada com o Prémio Nobel da Literatura 2013.


Munro não escreve grandes romances, nem trillers, nem ensaios mais ou menos filosóficos. Ele escreve contos, pequenas histórias quotidianas com personagens que retractam pessoas comuns na vida de pequenas povoações do seu país. São mulheres, famílias, adolescentes , as suas relações humanas analisadas pela lupa dos sentimentos e das emoções.

Encontros casuais, separações, partidas, acidentes, desencontros, acções que não se concretizam, desvios no caminho normal de todos os dias que levam à alteração da rota das vidas, do “destino” , das maneiras de pensar e de viver a vida.

A Academia Sueca, ao anunciar a distinção, referiu a escritora como a “mestre do conto contemporâneo”. Há quem a identifique como herdeira de Tchekhov ou do realismo lírico de James Joyce. Alice Munro possui um talento muito próprio de nos apresentar a essência da vida quotidiana de um modo conciso através de palavras simples nos seus contos e romances.

A editora Relógio D’Água publicou desde 2007 seis antologias de contos de Alice Munro e um romance com aspectos autobiográficos” A Vista de Castle Rock”.

Fugas


Sinopse
As oito histórias reunidas em Fugas falam sobre pessoas - mulheres de todas as idades e de origens diferentes, os seus amigos, amantes, pais e filhos -, cujas vidas, nas mãos de Alice Munro, se tornam tão reais e inesquecíveis quanto as nossas.




Oito contos, oito histórias de mulheres onde a vida e o destino teimam em pregar partidas, afastando pessoas, provocando desencontros e arrastando as personagens para caminhos que não são aqueles que gostariam de percorrer.

Como o próprio nome indica tratam-se de oito fugas, de passados complicados, de laços familiares, de matrimónios, de relações impetuosas, de limitações provocadas pelo envelhecimento ou doenças, ou dos próprios sentimentos e que nos fazem pensar na nossas próprias vidas. Quem somos, quais as opções que tomámos ao longo da vida e de que forma elas condicionaram a nossa vida actual.É fácil identificarmo-nos com algumas das personagens de Munro, pelas suas descrições e pelas suas vidas.

A vida que teima em nos afastar daquilo que sonhamos ou idealizamos em determinada fase e que nada podemos fazer par o evitar. De uma forma suave ou com uma força imensa ela pode arrasar-nos e mergulhar-nos num verdadeiro labirinto de sentimentos e emoções. E é aqui que Munro sabe tão bem interpretar estes conflitos, transpondo-os para o papel, com a leveza de palavras e com a crueldade de sonhos e planos desfeitos e que nada mais podemos fazer do que nos rendermos ao que está reservado.

Os contos “Acaso”, “Em breve”, “Silêncio” surgem-nos como uma trilogia, sem que, ao ler o primeiro, tenhamos a noção de que páginas mais à frente, iremos encontrar novamente Juliet. São três etapas da sua vida que nos surgem em separado e com um intervalo de tempo menor para “Em breve” mas de 20 anos para “Silêncio”. Nestas três histórias assistimos ao desenrolar de uma vida que procura seguir os seus sonhos, ou a sua busca pessoal, mas que no final quando tudo parece bem encaminhado, o chamado Destino revela-nos uma faceta menos esperada e ataca onde menos se espera.

A vida de Juliet prende-nos a atenção, levando-nos a quase não prestar atenção a alguns pormenores que nos vão sendo revelados, ou a outros que estarão subjacentes e não nos são transmitidos nos dois primeiros contos. É aqui que o seu talento é muitíssimo bom, pois o final inesperado acaba por ser um pouco consequência desses factos de que habilmente Munro nos foi desviando a atenção.

Para mim foram os melhores contos do livro, mas todos eles são muito bons.

No entanto não esperem que sejam contos com um final feliz, em que tudo corre bem e ultrapassadas as amarguras da vida, esta traz-nos a felicidade como um presente merecido. Nada disso.

São histórias demasiadamente reais em que a vontade humana e a realidade da vida ou do “destino” andam lado a lado, puxando para um ou outro lado, convergindo por vezes, mas afastando-se irreversivelmente noutras.

Para muitos, o conto é considerado uma arte menor na literatura. Para quem lê os meus comentários e me conhece, sabe bem o quão errada é, para mim, esta opinião, pois sou uma grande defensora dos contos e contistas de todos os tempos.

E sem dúvida nenhuma que Alice Munro tem um lugar cativo entre os melhores!

domingo, 23 de março de 2014

Terra Fria de Manuel Alves



Sinopse

Uma octogenária em fim de vida recebe a visita de um padre aposentado, para a última confissão, e ambos revisitam o passado na esperança de exorcizarem demónios de consciência. Cinquenta anos antes, a mulher fora denunciada à PIDE por um bufo que depois desapareceu sem deixar rasto juntamente com o agente enviado para investigar a denúncia. Mas o demónio de consciência mais antigo nascera anos antes, dos escombros da Segunda Guerra Mundial, nas ruínas de um coração.







Esmeralda, sentindo os passos da morte a aproximar-se, confessa-se. É com esta confissão que vamos entrando na sua vida, longa em idade e longa em vivências. É pela sua própria mão que vamos percorrendo os caminhos tortuosos da pequena aldeia e dos campos verdes do Norte de Portugal. 

Vamos sentindo as alegrias, as tristezas e sobretudo a grande revolta que atinge aquela gente. Uma história dura, cheia de mágoa que nos atinge forte, como um poderoso murro no estomago do qual não conseguimos fugir e vamos percorrendo folha a folha, com os olhos húmidos, o desenrolar da vida do nosso povo, numa época muito própria do nosso país.

A escrita do Manuel Alves, bastante particular e única, tem o condão de nos aproximar das personagens e fazer-nos parte da história. Por uns tempos (a duração da leitura e a fase seguinte) fazemos parte daquele mundo, são nossas as dores de parto da Esmeralda, a revolta do Silvério face à morte do irmão, são nossas as ternuras dos lobos para com o Quim, são nossas todas as intrigas daquela aldeia que neste momento também é nossa. 

É nossa, sim agora cada vez mais, a dor da separação, da partida para longe para poder ganhar a vida!

E no fundo, temos sempre alguém mais distante ou mais perto na linha do tempo, que passou por experiências de vida algo semelhantes e que, por vezes, a vida nos leva a esquecer. Com este livro somos obrigados a lembrar esses tempos, como velhos fantasmas que chegam bem vivos até nós. 

A Esmeralda é forte e a prova viva que o amor vence todas as barreiras, qualquer que seja a sua natureza. O amor de mãe, o amor de mulher, a saudade do amor, tudo converge para uma força imensa do seu interior. 

A escrita do Manuel é assim, leva-nos a Sentir e quantas vezes nos esquecemos disso…

Aconselho a sua leitura e podem aceder, por um preço irrisório aqui.

Lê-se de um fôlego, entre palavrões e lágrimas que a tortura nos faz soltar.



“A liberdade não é coisa que se mata, é vontade que mais cresce quanto mais alguém lhe puxa as raízes do chão, é a vontade indomável de quem quer viver sem a fraqueza obrigatória de se render.” 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dia Internacional do Contador de Histórias


Apesar de um dia atrasada, não quero deixar passar este dia sem uma pequena homenagem a este dia. Para isso não vou escrever muito, apenas vos deixo uma história fantástica ....


Com sua voz de mulher

Aquele Deus era dono daquela cidade como um mortal seria dono de fazenda ou sítio. Não era grande a cidade. O templo, casas, e campo ao redor. Mas porque era dono daquela cidade, o deus era também responsável pela felicidade dos seus habitantes.

E um dia, pelas preces, percebeu que os habitantes não eram felizes.

- Nada lhes falta, disse o deus, em voz alta. Cuido para que as estações se sigam em boa ordem. Garanto-lhes colheita no campo e comida na mesa. Nenhum grão apodrece nas espigas. Nenhum ovo gora nos ninhos. E seus filhos crescem. Por que então não são felizes?

Porém os homens desconhecem as perguntas dos deuses. E embora tivesse falado em voz tão alta que poderia ser ouvida de uma estrela a outra, ninguém lhe respondeu.

A cidade estava na palma da mão do deus. E ainda assim tão longe que ele não via os sentimentos daquelas pessoas.

- Irei até lá, disse a alta voz. Entre eles, verei melhor que se passa.

E tendo decidido, abriu seus imensos guarda-roupas à procura de uma identidade com a qual apresentar-se no mundo dos mortais. Havia ali peles e couros de todos os animais, da lisa pele da gazela à áspera couraça do rinoceronte. O pescoço da girafa pendia de um cabide, plumas coloridas despontavam na prateleira e numa gavetinha enfileiravam-se as preciosas carapaças dos insetos. Mas dessa vez não seria como animal que desceria à terra. Remexeu entre as peles dos humanos, suspendeu uma escura, bronzeada de sol, hesitou por um instante. Depois escolheu a mais lisa e macia, fechou-se bem dentro dela, cobriu-se com uma túnica. E desceu.

E eis que aquela mulher de longos cabelos apareceu na cidade dizendo que era deus, e ninguém acreditou. Fosse deus, teria vindo como guerreiro, herói, ou homem poderoso. Fosse deus, apareceria como leão, touro bravio ou águia lançando-se das nuvens. Até o crocodilo e a serpente poderiam abrigar deus em seu corpo.

Mas uma mulher vinda das ruas estreitas nada mais podia ser que uma mulher.

E assim o Deus prendeu seus longos cabelos sobre a nuca e foi procurar um trabalho. Mas a uma mulher não se dá trabalho de ferreiro, nem se põe na carroça a conduzir cavalos. Uma mulher não é aquela que comanda soldados. Uma mulher não é sequer aquela que conduz o arado. E depois de muita procura, o Deus-mulher só conseguiu empregar-se em uma casa para ajudar nas tarefas domésticas.

Era uma boa casa a que a acolheu. A esposa diligente, o marido trabalhador. Poeira não se juntava nos cantos, embora a trouxessem em suas sandálias. E os filhos cresciam como crescem filhos que não tem doenças. Porém, pouco sorriam. Cumpriam suas tarefas de dia. À noite juntavam-se no estábulo para aproveitar o calor dos animais. As mulheres fiavam. Os homens consertavam ferramentas ou faziam cestos. Ninguém falava. As noites eram longas depois de longos dias. Os humanos se entediavam.

Até mesmo o Deus, de fuso na mão, se entediava. E uma noite, não suportando a mesmice dos gestos e do silêncio, abriu a boca e começou a contar.

Contou uma história que se havia passado no seu mundo, aquele mundo onde tudo era possível e onde viver não obedecia regras pequenas como as dos homens. Era uma longa história, uma história como ninguém nunca havia contado naquela cidade onde não se contavam histórias. E as mulheres ouviram de olhos bem abertos, enquanto o fio saía fino e delicado entre seus dedos. E os homens ouviram esquecidos de suas ferramentas. E o menino que chorava adormeceu no colo da mãe. E as outras crianças vieram sentar-se aos pés do Deus. E ninguém falou nada enquanto ele contava, embora em seus corações todos estivessem contando com ele.

A noite foi curta aquela noite.

Na noite seguinte, reunidos todos no estábulo, como todas as noites, o deus não falou. As mulheres olhavam para ele de vez em quando, por cima do fuso. Os homens evitavam fazer barulho, deixando o silêncio livre para ele.

Todos esperavam. Mas as crianças, que brincavam com o deus-mulher durante o dia, vieram juntar-se ao seu redor.

Uma puxou de leve a saia do Deus-mulher e pediu: - Conta!

E com sua voz de mulher o Deus contou.

Assim, noite após noite, o Deus entregou suas histórias à família como até então lhes havia entregado as frutas maduras cheias de sementes. E não apenas àquela família, porque logo o vizinho da frente soube, e à noite apresentou-se com os seus no estábulo também para ouvir. E depois foi a vez do vizinho do lado. E em pouco tempo o estábulo estava cheio, e as pessoas amontoavam-se nas janelas e porta.

Agora, durante o dia, enquanto aravam, martelavam, enquanto erguiam o machado, os homens lembravam-se das histórias que tinham ouvido à noite, e tinham a impressão de também navegar, voar, cavalgando trovões e nuvens como aquelas personagens. E as mulheres estendiam lençóis como se armassem tendas, repreendiam o cão como se domassem leões, e atiçando o figo chuçavam dragões. Até o pastor com suas ovelhas não estava mais só, e as ovelhas eram sua legião.

Os homens sorriam debruçados sobre suas tarefas, as mulheres cantavam e tinham gestos amplos nos braços, e as crianças se enrodilhavam estremecidos de medo e prazer. O tédio havia desaparecido.

Foi quando uma mulher que havia estado no estábulo passou a repetir as histórias do Deus para outros habitantes da cidade. Repetir exatamente, não. Aqui e ali acrescentava coisas, tirava outras e cada história, sendo a mesa, era outra. Mais do que contar, recontava. Depois houve um rapaz, que também contava e recontava as histórias. E, o tempo passando, ninguém mais podia dizer com certeza de onde tinha vindo esta ou aquela história, e quem a havia contado primeiro.

Ninguém podia dizer, tampouco, qual o paradeiro daquela mulher de longos cabelos presos sobre a nuca, que um dia havia aparecido na cidade vinda não se sabe de onde. E que em outro dia havia partido com seu carregamento de histórias.

Marina Colasanti
Longe como meu querer
1992
Virginia Sterrett, 1920 (openlibrary.org)

sábado, 8 de março de 2014

8 de Março - Dia Internacional da Mulher e Marina Colassanti

Há quem refira que a 8 de Março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos em Nova Iorque fizeram greve. Ocuparam a fábrica e reivindicaram melhores condições de trabalho, nomeadamente equiparação de salários com os homens, menor carga horária e tratamento digno no ambiente de trabalho. 

Esta manifestação foi reprimida com enorme violência e as mulheres foram trancadas dentro da fábrica. Foi incendiada e morreram cerca de 130 tecelãs carbonizadas.

Em muitos locais faz-se referência a esta situação como o despoletar para que a 8 de Março se comemore o Dia Internacional da Mulher. Mas também há fontes que afirmam que este incêndio foi um acidente e que se passou em 25 de Março de 1911.

Há quem refira que a origem deste dia se prenda com as manifestações das mulheres russas por melhores condições de vida e trabalho e contra a entrada da Rússia czarista na Primeira Guerra Mundial.

Várias fontes referem que o primeiro Dia Internacional da Mulher foi celebrado em 28 de Fevereiro de 1909 nos Estados Unidos,  em memória do protesto contra as más condições de trabalho das operárias da indústria do vestuário.
No entanto foi no ano de 1910 numa conferência na Dinamarca, dirigida pela Internacional Socialista que foi aprovada a comemoração de um Dia Internacional da Mulher. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU.

Factos históricos um pouco ambíguos, que não determinam a origem certa e o que levou a que este dia 8 de Março sejam considerado o Dia da Mulher, caracterizaram a minha breve busca na internet.
No entanto, factos à parte, o que é certo é que ainda hoje, independentemente de haver um dia para este fim, assistimos a inúmeras situações discriminatórias entre os dois sexos, havendo mesmo certos países em que tal facto é de uma enorme atrocidade.

Não me considero uma feminista, pois acho que cada sexo tem as suas qualidades, defeitos e características e "cada um é como cada qual", cada individuo é um ser próprio e não podemos ser iguais a outro. Mas confesso que defendo direitos iguais, valorizações profissionais iguais e que o trabalho desempenhado por uns e por outros sejam avaliado de uma forma igualmente justa e correcta. 

Sem me querer alongar muito neste comentário apenas vos quero deixar um pequeno conto de uma escritora Marina Colasanti (nascida na Etiópia e que aos 11 anos foi para o Brasil onde vive até aos dias de hoje, daí que o texto esteja em português do Brasil) em homenagem a todas as tecelãs que morreram naquele dia, a todas as outras que desconhecemos e a todas nós mulheres que temos voz e que temos direito a termos vontade própria.


A Moça Tecelã 

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor de luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos de algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao seu lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.

Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

- Uma casa melhor é necessária, -- disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. – Para que ter casa, se podemos ter palácio? – perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cómodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

- É para que ninguém saiba do tapete, -- disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: -- Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

 Marina Colassanti.

domingo, 2 de março de 2014

O Beijo da Palavrinha de Mia Couto


Este livro foi-me aconselhado e não consegui resistir.

É um livro infantil, mas que é simplesmente lindo...se é só para crianças, então sejamos todos crianças para podermos perder-nos nas palavras e nos desenhos que ilustram a vida de Maria Poeirinha.

Mia Couto, na sua forma típica de escrever, fala-nos de dois irmãos que nunca viram o mar. No entanto é ele que poderá salvar a menina de uma doença incurável.

Os desenhos são de Danuta Wojciechowska, ilustradora canadiana que vive e trabalha em Portugal.

As cores quentes de África misturam-se com os azuis do mar e do rio. Trazem os cheiros e os sons desse mundo pobre.

Um livro triste, mas que traz as palavras no coração.

Transcrevo a história, mas desde já vos digo que nada tem a ver com o próprio livro na mão, em que se folheia página a pagina, com uma imensidão nostálgica no rosto.



Era uma vez uma menina que nunca vira o mar. Chamava-se Maria Poeirinha. Ela e a sua família eram pobres, viviam numa aldeia tão interior que acreditavam que o rio que ali passava não tinha nem fim nem foz.

Poeirinha só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos.

Às vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos e retalhos.

Mas depressa ela saía do sonho, pois seus pés descalços escaldavam na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão.

Um certo dia, chegou à aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar.

Que a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, uma luz que fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol mas das águas profundas.

A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime.

- Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!

Certa vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante, ela ficou vizinha da morte. O Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa.

Para que se curasse, disse ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela.

- Mas o mar cura assim tão de verdade?

- Vocês não entendem? - respondia ele. - Não há tempo a perder. Metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora viagem.

Contudo, a menina estava tão fraca que a viagem se tornou impossível. Todos se aproximavam da cabeceira e ali ficavam sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. A mãe pegou nas mãos da menina e entoou as velhas melodias de embalar.

Em vão. A menina apenas ganhava palidez e o seu respirar era o de um fatigado passarinho. Já se preparavam as finais despedidas quando o irmão Zeca Zonzo trouxe um papel e uma caneta.

- Vou-lhe mostrar o mar, maninha.

Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano.




Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela em bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra

                                             MAR 

Apenas isso: a palavra inteira e por extenso.

O menino ficou olhando para a folha parecendo que não entendia o que ele mesmo escrevera. 

Antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, a irmã murmurou, em débil suspiro:

-Não vale a pena, mano Zonzo. Eu já não distingo letra, a luz ficou cansada que já não se consegue levantar.

-Não importa, Poeirinha. Eu lhe conduzo o dedo por cima do meu.

Os pais chamaram o moço à razão, ele que poupasse a irmã daquela tontice e que a deixasse apenas respirar.

Mas Zeca Zonzo fingiu não escutar. Ele tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que desenhara.

-Vês esta letra, Poeirinha?

-Estou tocando sombras, só sombras, só.

Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel.

-Experimente outra vez, mana. Com toda a atenção. Agora, já está sentindo?

-Sim. O meu dedo já está a espreitar.

-E que letra é?

E sorriram os dois, perante o espanto dos presentes.

Como se descobrissem algo que ninguém mais sabia. E não havia motivo para tanto espanto. 

Pois a letra m é feita de quê?

É feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem.

E Poeirinha passou o dedo a contornar as concavidades da letrinha.

-É isso, manito. Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio.

-E essa outra letrinha, essa que vem a seguir?

Essa a seguir é um  a

É uma ave, uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria.

Em volta todos se haviam calado. Os dois em coro decidiram não tocar mais na letra para não espantar o pássaro que havia nela.

-E a seguinte letrinha?

E os dedos da menina magoaram-se no r duro, rugoso, com suas ásperas arestas.


O Tio Jaime Litorâneo, lágrima espreitando nos olhos, disse:

- Calem-se todos: já se escuta o marulhar!

Então do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca, como se fosse um lençol agitado pelo vento. Era Maria Poeira que se erguia? era um simples remoinho de areia branca? 

Ou era ela seguindo no rio, debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos?

Ainda hoje, tantos anos passados, Zeca Zonzo, apontando o rosto da sua irmãzinha na fotografia, clama e reclama.
   
-Eis minha mana poeirinha que foi beijada pelo mar.

E se afogou numa palavrinha.

sábado, 1 de março de 2014

Duas Gotas de Sangue e um Corpo para a Eternidade - Carina Portugal




Sinopse

Em pleno séc. XVI, a Inquisição lavra as terras de Inglaterra. Numa aldeia remota, um inocente amarrado à fogueira amaldiçoa todos aqueles que o condenaram à morte. As suas palavras acordam os espíritos da Natureza, e as gémeas Alaina e Leanora pressentem-no. Contudo, o que poderão fazer duas curandeiras para os deter? Além disso, ambas escondem um segredo que as poderá matar ‒ o seu próprio amor.










Desta autora, já tinha lido um pequeno conto Triste e Leda Madrugada no Fantasy&Co há uns tempos atrás, e sempre pensei ler mais, mas a oportunidade só surgiu agora numa leitura conjunta.
Uma coisa, desde já deve ser dita, para que não suscite dúvidas no resto do meu comentário. A autora escreve bem, apresentando uma escrita bastante cuidada em termos gramaticais e bastante fluída. Nada de pretensiosismos, nem de excessiva adjectivação, o que na maioria dos trabalhos dos novos escritores que têm surgido, não acontece.

A história não apresenta nada de novo, o tema é já conhecido, pois são inúmeras as obras históricas ou de ficção que retratam e apresentam este período da história do povo. A perseguição a quem  era acusado de praticar actos de bruxaria ou seguidor de outro tipo de crenças, que não as instituídas pelo poder (normalmente a religião católica), foi durante muitos anos uma prática assumida em muitos países, sobretudo na Europa. Em todo o caso, a história das duas irmãs está bem desenvolvida e interessante com um final muito bem atingido.

No entanto há um conjunto de pormenores que não consigo deixar de os apontar, no sentido de uma critica mais construtiva e não num sentido depreciativo do conto.

Um deles prende-se com o espaço temporal em que decorre a história.Toda a acção passa-se em 6 dias, e nesses dias acontece tanta coisa e com tanta intensidade que me parece completamente forçado. O bebé que perde os pais num fogo, salvando-se miraculosamente, no dia seguinte está feliz e contente na feira (eu sei que os bebés têm um poder muito grande de adaptação às novas realidades, mas...), por outro lado o "irmão" carinhoso passa a .... (não quero spoilar) no mesmo período de tempo, sendo que em metade desses dias consegue pensar na ideia, prepará-la e agir.

As duas irmãs são muito mais do que simples curandeiras, pois no desenvolvimento da história e mesmo no final, elas são capazes de feitos extraordinários, demonstrativos do poder que têm e que conseguem conjurar, mas neste caso porque elas surgem como mulheres tão frágeis, tão inseguras? Pelo menos a mim é esta a sensação que me transmitiram durante todo o conto.

Até pela relação que têm entre elas, que a mim não me chocou, por tudo aquilo que encerram dentro de si e que culmina no desenlace final, elas deveriam ser mulheres fortes, maduras, capazes de dobrar os céus a seu favor.

De qualquer forma, lê-se muito bem e irei certamente ler mais contos da Carina.

Para quem quiser ler este conto, porque vale a pena,  pode encontrá-lo aqui:

https://www.smashwords.com/profile/view/letoofthecrows