quarta-feira, 21 de maio de 2014

"As Fogueiras de Deus" de Patricia Anthony

Serão anjos com a palavra de Deus? Ou serão demónios enviados 
para desviar as pessoas da verdadeira fé?


Sinopse

Um romance histórico com laivos fantásticos, passado no Portugal medieval.
Em Portugal, onde a Inquisição é a única detentora da verdade, o padre Manoel Pessoa começou a escutar estranhas confissões dos habitantes de Quintas, um povoado perto de Mafra. Falam de inexplicáveis luzes no céu... De anjos que se deitam com as mulheres da aldeia... De virgens que dão à luz....
Mas o mais estranho é que algumas pessoas, incluindo Sua Majestade, o rei Afonso, viram um navio em chamas a cair dos céus. Do seu interior surgiram criaturas fascinantes no seu silêncio e grandiosas na sua estranheza. Serão anjos com a palavra de Deus? Ou serão demónios enviados para desviar as pessoas da verdadeira fé? A Inquisição está determinada a descobrir a verdade... e talvez não falte muito para que o cheiro das suas fogueiras se espalhe pelo reino.

Por certo, existem inúmeros livros que nos falam deste período da História da Humanidade, quer históricos, quer romanceados. A Inquisição desperta em todos, um sentimento de repulsa (para não referir algo mais forte e ferir susceptibilidades em termos de linguagem) que inspirou, e continua a inspirar, muitos escritores profissionais e amadores. 

No entanto confesso que em nenhum senti um sentimento tão forte como ao ler este livro de Patrícia Anthony. Porquê? Não sei responder ao certo, mas a sua escrita tem o dom de nos colocar lado a lado com as personagens, com a vida daquela pequena aldeia, no concelho de Mafra, com os seus sentimentos, dúvidas e desejos. 

As dúvidas existenciais da fé divina assolam-nos e vemos-nos perante a mediocridade das altas esferas do clero da época, a sua podridão e os seus vícios face a face com a ingenuidade e a simplicidade do “pastor do rebanho de Quintas”. Pelo meio deste dueto, Manoel Pessoa, jesuíta e inquisidor itinerante, que viaja de aldeia em aldeia, não se encontra preparado para o que vai encontrar, acontecimentos que questionarão grande parte dos seus valores e da sua vida.

Todas estas questões que nos são apresentadas de uma forma sarcástica e cheia de ironia, acabam por se revelar, na minha opinião, a componente essencial da história e acabam por nos envolver de tal forma que somos atingidos bem em cheio pelo final lancinante.

Mas, falando um pouco mais dos personagens e dos acontecimentos….

D. Afonso VI, o jovem Rei de Portugal, que revela alguns problemas de raciocínio (como é sabido da história de Portugal, sendo sucedido pelo seu irmão D. Pedro que lhe usurpa o trono, precisamente nesta época) e que parte à procura dos moinhos de vento quixotescos. Quando vê uma estrela cadente a cair e a embater na superfície terrestre, resolver partir para observar melhor o local onde esta caiu, que não é mais nem menos que junto a Quintas.

Manoel Pessoa, na sua volta habitual enquanto inquisidor, depara-se com um conjunto de situações extraordinárias que revolucionam a vida da pacata aldeia. “ Fornicações” como lhe refere D. Inês, em confissão, ”Eles chegam de noite e ….. “ . A pequena Marta que jura ter visto e falado com a Virgem , e a jovem Maria Helena que engravida de um anjo sem nunca ter perdido a virgindade - virgo intactus

Uma bela herbologista que inspira o receio entre a população, que a crê como uma bruxa, e que se revela como amante de Manoel Pessoa. 

O padre da aldeia, um humilde franciscano com alguma idade, que defende o seu rebanho até aos últimos momentos.

O Monsenhor Gomes, inquisidor-mor, que se coloca acima de todos, identificando os culpados das histórias heréticas e que, ultrapassando todas as barreiras legais acaba, através do seu poder, de julgar inocentes, lançando-os nas “fogueiras de Deus”.

A queda de uma nave extraterrestre, porque assim o é a tal estrela cadente, num meio tão hermético de ideias e de desenvolvimento, surge como uma heresia, uma clara obra de Satanás. 

Os seus passageiros, três seres misteriosos e estranhos que são identificados como querubins ou mesmo anjos, que falam com os seus olhos profundos e negros na mente das pessoas, despertando nelas sensações diferentes de paz ou de trevas consoante o coração e /ou inocência de cada um.

As personagens envolvem-nos, como já referi, a história toca-nos e somos levados pelo caminho que leva à perdição, pois acabamos por questionar a Santa Igreja e as suas maquiavélicas atitudes e julgamentos preconceituosos. 

O final é terrível e (perdoem-me os spoilers) esperamos até ao último momento um desenlace diferente, mas a realidade era outra nesse tempo e não conseguimos deixar de sentir o cheiro e os gritos lancinantes, como se fizéssemos parte daquela pequena aldeia, que nunca mais será a mesma, tal é a intensidade com que os factos são narrados.

Um livro obrigatório que apresenta uma linguagem e uma crítica social muito forte. 

A tradução de João Barreiros parece-me excelente (digo parece-me, apenas porque não li o original) e está muito adequada aos termos locais e próprios da época, há um trabalho muito bom nesse sentido e que me parece ter sido em grande parte um contributo do próprio tradutor.

Sendo um livro classificado como FC ou não, este facto não interessa, pois o que aqui predomina é mesmo esta crítica mordaz à época e à Inquisição, feita de uma forma magistral por Patrícia Anthony.