terça-feira, 22 de abril de 2014

Dia da Terra




Para comemorar este dia, relembro aqui o discurso do Chefe indígena Duwamish (Chefe Seattle) fez ao Governo Americano por volta de 1887, depois de o Governo ter declarado que pretendia comprar o território da tribo.


"O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.

Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano.

Minha palavra é como as estrelas - elas não empalidecem.

Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho.

O homem branco esquece a sua terra natal, quando - depois de morto - vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem - todos pertencem à mesma família.

Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.

Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar d'água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão.

Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora, deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe - a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou miçanga cintilante. Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.

Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos olhos do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende.

Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das assa de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende; o barulho parece apenas insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou, de noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento a sobrevoar a superfície de uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo a pinheiro.

O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum - os animais, as árvores, o homem.

O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.

Assim pois, vamos considerar tua oferta para comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.

Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisontes apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisonte que (nós - os índios ) matamos apenas para o sustento de nossa vida.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.

Deves ensinar a teus filhos que o chão debaixo de seus pés são as cinzas de nossos antepassados; para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra - fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.

De uma coisa sabemos. A terra não pertence, ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.

Os nossos filhos viram seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, mesmos uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode ser isento do destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de uma coisa sabemos que o homem branco venha, talvez, um dia descobrir: nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues, agora, que o podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra; mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira e é igual sua piedade para com o homem vermelho e o homem branco. Esta terra é querida por ele, e causar dano à terra é cumular de desprezo o seu criador. Os brancos também vão acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de morrer uma noite, sufocado em teus próprios desejos.

Porém, ao perecerem, vocês brilharão com fulgor, abrasados, pela força de Deus que os trouxe a este país e, por algum desígnio especial, lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois não podemos imaginar como será, quando todos os bisões forem massacrados, os cavalos bravios domados, as brenhas das florestas carregadas de odor de muita gente e a vista das velhas colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o emaranhado da mata? Terá acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar adeus à andorinha e à caça; será o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.

Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez, possamos viver o nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo nestas floresta e praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater do coração de sua mãe.

Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. "Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse": E com toda a tua força o teu poder e todo o teu coração - conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum."



sábado, 12 de abril de 2014

"A Noite" de Guy de Maupassant


Para quem não conhece Guy de Maupassant, poderei dizer que é um dos maiores contistas europeus.

Na sua linguagem muito própria, simples e envolvente, o autor escreve, na maioria dos casos, como sendo o próprio protagonista da história que se desenvolve e que desabafa a um amigo próximo ou um médico que o assiste. 

Os seus contos são envoltos numa áurea negra de pessimismo, de infelicidade, de medo pelo desconhecido, ou mesmo caracterizados pela atmosfera sobrenatural sempre presente. No entanto paralelamente Maupassant é extremamente humano e essa característica surge de uma forma clara e simples através de toda a sua obra. 

Deixo-vos um conto dele, para quem não conhece, espero que goste. Para quem conhece é sempre bom relembrar este grande contista do século XIX que influenciou tantos outros escritores após a sua curta vida.

A Noite


Eu amo a noite com paixão. Amo como se ama o seu país ou sua amante, um amor instintivo, profundo, invencível. Eu a amo com todos os meus sentidos, com meus olhos que veem, com o meu nariz que respira, com os meus ouvidos que escutam o silêncio e as trevas que minha carne acaricia. As cotovias cantam ao sol, no céu azul, com ar quente, na suave brisa das manhãs de luz. A coruja voa durante a noite neste mesmo lugar, o negro que passa através do espaço escuro e encantador, embriagado pela imensidão sombria ela pia de forma vibrante e sinistra.

Durante a claridade do dia fico cansado, entediado. As manhãs são duras e barulhentas. Me levanto com dificuldades, visto-me devagar, saio todo molenga, pois cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento me cansa como se levantasse um peso opressor.

Porém quando o sol se põe, surge-me uma alegria confusa, uma satisfação que anima todo meu corpo. Eu desperto, fico motivado. Quando as sombras surgem sinto-me diferente, mais jovem, mais forte, mais alerta, mais feliz. Eu contemplo a penumbra ficar cada vez mais densa, a grande sombra cair suavemente do céu: ela afoga a cidade, como uma onda fugaz e incompreensível, ela esconde, apaga, destrói a cor, deforma, oculta as pessoas, casas, e os monumentos com seu toque imperceptível.

Então, eu quero gritar de prazer como as corujas, correr sobre os telhados como os gatos, explosões dilatam meu corpo, um desejo de amar incontrolável se acende nas minhas veias. Eu então saio, seguindo sem rumo às vezes, nos escuros subúrbios, ou então no bosque perto de Paris, onde eu ouço meus noturnos irmãos animais vagando e caçando meus semelhantes.

Aquilo que você ama com violência sempre acaba te matando. Mas como explicar isto que está acontecendo comigo? Ou como posso explicar aquilo que vivo? Eu não sei bem, já não sei mais, só sei que é real. Só isso! Aconteceu ontem; foi ontem? Sim, provavelmente, talvez tenha ocorrido anteontem, ou dias atrás, quem sabe num outro mês, ou alguns anos antes... Não sei. Mas deve ter sido ontem porque o sol não voltou a aparecer e o dia nunca mais raiou. Quanto dura uma noite? Qual é sua intensidade? Alguém saberá dizer? Alguém conhece?

Foi então ontem, eu saí como faço todas as noites depois do jantar. O tempo estava muito bonito, muito suave, muito quente. Segui até os Bulevares olhando, sobre a minha cabeça, um rio preto cheio de estrelas correndo no céu além dos telhados das ruas, como se as telhas das casas demarcassem as margens daquele rio torrencial de estrelas. Tudo estava claro, como um ar leve, dês da luz dos planetas até as lâmpadas a gás. Então, muitas luzes brilhavam lá em cima e na cidade que parecia um foco de luz na escuridão. As noites são brilhantes e felizes, como os grandes dias de sol.

No Bulevar os cafés eram sorvidos por pessoas noturnas, eles riam, pediam mais café e bebiam. Entrei no teatro, por alguns instantes, mas em qual teatro? Não sei. Estava tão claro que me desanimou então eu fugi com o coração ofuscado pelo choque de luz douradas das sacadas, pelo lustres de cristais cintilantes falsos e enormes, pela cortina de fogo da ribalta, pela melancolia da claridade falsa e crua. Cheguei ao Champs-Elysees, onde os cafés-concertos pareciam incêndios entre as folhas.

As castanheiras friccionavam uma luz amarela, elas pareciam pintada como árvores fosforescentes. As luzes elétricas assemelhavam-se as luas brilhantes e pálidas, eram ovos de lua caídas do céu, pérolas monstruosas, vivas, lívidas com seus bicos de gás encarnado, misteriosa e real, com gás sujo e desagradável, como guirlandas de vidros coloridos. Parei em baixo do Arco do Triunfo e olhei para a avenida, a longa e maravilhosa avenida estrelada, seguindo até Paris entre duas linhas de fogo, e vários Sois! Os astros lá em cima, estranhos astros jogados aleatoriamente na vastidão desenhando figuras adversas, formatos que nos fazem sonhar, que nos fazem pensar tanto. Entrei no Bois de Boulogne e fiquei lá demoradamente, por muito tempo. Um tremor apoderou-se de mim, uma emoção estranha, inesperada, poderosa, era alguma exaltação do meu cogitar que beirava a insanidade.

Andei um longo, longo tempo. Depois voltei.

Que horas eram quando tornei a passar sob o Arco do Triunfo? Também não sabia. A cidade dormia, em nuvens, grandes nuvens escuras que se alastravam lentamente pelo céu. Pela primeira vez eu senti que algo singular, novo, iria acontecer. Tive a impressão que estava frio, um ar mais denso cresceu, naquela noite, minha noite mais amada, meu coração ficou pesado. A avenida estava deserta agora. Apenas dois policiais caminhavam na direção dos táxis. Na rua, mal iluminada pelos lampiões a gás que pareciam apagar, seguiam uma fila de carroças de legumes indo para Les Halles.

Elas eram puxadas lentamente, carregadas com cenouras, nabos e repolhos. Os cocheiros dormiam, invisíveis. Os cavalos andavam no mesmo ritmo, seguindo a carroça da frente, em silêncio pela calçada de madeira. Diante das luzes da calçada eram iluminadas de vermelho as cenouras, de branco os nabos, de verde claro os repolhos. Carruagens que passavam uma após a outra, com mercadorias brilhantes, uma tinha um rubro flamejante como fogo, cintilante semelhante prata e a seguinte esverdeada igual à esmeralda. Segui elas, quando virei na rua Royale e voltei para os Bulevares. Ninguém, nenhum café iluminado, apenas alguns atrasados marchando tardiamente. Eu nunca tinha visto Paris tão morta como um deserto. Peguei meu relógio. Eram duas horas.

Uma força me empurrava, era uma necessidade de andar. Então eu fui para a Bastilha. Lá percebi que eu nunca tinha visto uma noite tão escura assim, porque não conseguia distinguir a Colonne de Juillet, cuja engenharia de ouro estava perdida na escuridão impenetrável. Um cobertor de nuvens, grossas como a imensidão, afogando as estrelas e parecia descer à Terra para destruí-la.

Voltei. Não havia ninguém ao meu redor. Porém, na praça Du Chateau d'Eau, um bêbado quase me bateu e depois desapareceu. Eu ouvi por algum tempo seus passos sonoros e irregulares. Eu continuei seguindo. Próximo do Faubourg Montmartre passou um táxi descendo na direção do Sena. Eu chamei. O motorista não respondeu. Uma mulher estava perambulando perto da Rue Drouot:

- Cavalheiro, escute.

Apertei meus passos para evitar a sua mão estendida. Daí então, mais nada. Na frente do Vaudeville um catador de trecos vasculhava a sarjeta. Sua pequena lanterna iluminava fracamente o chão.

- Que horas são, amigo? perguntei.

- Como vou saber, não tenho relógio!- ele falou entre os dentes.

Foi então que eu percebi, de repente, que as luminárias de gás estavam desligadas. Sei que nesta estação do ano elas são apagadas mais cedo, antes de amanhecer para economizar energia. Porém o dia ainda estava longe, muito longe de raiar.

- Vamos para Les Halles, pensei, pelo menos lá irei encontrar vida.

Segui meu caminho, mas eu não conseguia ver nada para me orientar. Caminhei lentamente, como se estivesse numa floresta densa, tateando as ruas para desvendá-las. Próximo do Credit Lyonnais um cão rosnou. Entrei na Rue de Grammont e me perdi, vaguei então sem rumo, quando reconheci a Bolsa pelas grades de ferro que a rodeavam.

Toda Paris dormia, um sono profundo, assustador. Ao longe, no entanto, vi novamente um táxi, talvez tenha sido o mesmo que passou por mim mais cedo. Tentei alcançá-lo, seguindo o som das suas rodas, pelas ruas desertas e enegrecidas, negra, negra como a morte. Eu o perdi novamente. Onde eu estava? Quem seria tão tolo para desligar o gás tão cedo! Ninguém mais vi na cidade, nenhum andarilho atrasado, nenhum vagabundo, nenhum gato miando para sua felina. Nada.

Onde estavam os policiais? Então eu disse: "Vou gritar, assim eles virão." Me lamentei. Porque ninguém respondeu. Berrei mais alto. Minha voz se propagou no espaço, sem eco, diminuindo abafada, esmagada pela noite, pela noite impenetrável.

- Socorro! Socorro! – Gritei.

Meu apelo desesperado ficou sem resposta. A que horas foi isso? Tentei olhar para meu relógio, porém eu não tinha fósforos. Eu ouvia o tique-taque da pequena caixa de engrenagens mecânica com uma bizarra e desconhecida alegria. Ele parecia viver. Eu não me sentia tão sozinho. Que mistério! Eu voltei a andar como um cego, sentindo as paredes com minha bengala, onde todo momento voltava meus olhos para o céu, esperando o dia raiar e finalmente a luz aparecer, mas o espaço estava soturnamente revolto, todo negro, a escuridão tinha tamanha profundidade que não havia mais cidade.

Que horas poderiam ser? Eu andava, parecia aquele momento uma eternidade, porque minhas pernas involuntariamente curvavam-se abaixo de mim, meu peito arfava e eu sofri terrivelmente com fome. Decidi tocar a campainha da primeira casa que eu esbarrasse. Eu puxei a maçaneta de bronze da porta, toquei o sino da campainha, ele soava estranhamente como se estivesse vibrando sozinho na casa. Eu esperei sem respostas, ninguém abriu a porta. Toquei novamente, esperei mais uma vez. Nada!

Eu sentia medo! Corri para a próxima casa, e por vinte vezes naquela calçada eu fiz soar a campainha num corredor escuro onde deveria estar dormindo algum porteiro. Mas ele não acordou, então eu foi mais longe, puxando com toda a minha insistência os sinos, chutando com meus pés, batia minha bengala nas portas, no entanto permaneceram fechadas.

De repente percebi que estava chegando ao Halles. Os mercados estavam desertos, sem murmúrio, sem um único movimento, sem uma carroça, sem uma alma sequer, na havia nenhum banca de legumes ou flores. Tudo ali estava vazio, imóvel, abandonado, morto!

Um pânico se apoderou de mim, algo terrível. O que estava acontecendo? Oh meu Deus! O que estava acontecendo?

Eu parti. Mas que hora? A hora! Quem me indicaria o tempo? Nenhum relógio, nenhuma badalada soou nos sinos dos monumentos.

- Vou abrir o vidro do meu relógio e sentir os ponteiros com os dedos. pensei. Peguei meu relógio... ele não trabalhava mais... estava parado. Nada! Nada mais, além de um frio na cidade, eu não percebia nenhum chiado, nenhum ruído se propagava pelo ar. Nada! Nada mesmo! Nenhum único som das rodas de um distante carro. Absolutamente nada!

Eu estava no cais, e uma brisa gélida saia do rio. O Sena corria ainda? Eu agora queria saber, encontrei as escadas, desci... Eu não conseguia ouvir o borbulhar do fluxo das águas nas colunas da ponte... desci mais um pouco... senti a areia... depois a lama... então a água... Mergulhei meu braço... corria... sim o rio ainda corria... Frio... Frio... Frio... quase congelado... quase seco... quase morto. Eu senti que não conseguiria ter forças para recuar... e que o rio iria desfalecer ali... Eu também, de fome, de cansaço, de frio.



quinta-feira, 3 de abril de 2014

Duna de Frank Herbert

Sinopse:

"Duna" é considerado o melhor romance de ficção científica de sempre. Uma obra que arrebatou a crítica com o estilo poderoso de Frank Herbert e conquistou milhões de leitores com a sua imaginação prodigiosa. Prepare-se para uma viagem que nunca irá esquecer, até um longínquo planeta chamado Arrakis… O Duque Atreides é enviado para governar o planeta Arrakis, mais conhecido como Duna. Coberto por areia e montanhas, parece o local mais miserável do Império. Mas as aparências enganam: apenas em Arrakis se encontra a especiaria, uma droga imensamente valiosa e sem a qual o Império se desmoronará.

O Duque sabe que a sua posição em Duna é invejada pelos seus inimigos, mas nem a cautela o salvará. E quando o pior acontece caberá ao seu filho, Paul Atreides, vingar-se da conspiração contra a sua família e refugiar-se no deserto para se tornar no misterioso homem de nome Muad’Dib. Mas Paul é muito mais do que o herdeiro da Casa Atreides. Ao viver no deserto entre o povo Fremen, ele tornar-se-á não apenas no líder, mas num messias, libertando o imenso poder que Duna abriga numa guerra que irá ter repercussões em todo o Império…"


Antes de ler “Duna” gostei de Arrakis!

Pelos comentários que li, pelo que ouvi e pela sinopse do próprio livro, quase que posso dizer que me apaixonei por aquele planeta árido, sem água, e sem vegetação, excepção feita à especiaria., claro. Este meu gosto provém da paixão que tenho pelos grandes espaços, aqueles em que o nosso olhar se perde num horizonte sempre igual, o deserto fascina-me e leva-me a questionar imensas coisas interiormente. Há um ditado Tuareg que diz "Deus criou o mar para que os homens pudessem alimentar-se e o deserto para que descobrissem a alma." e não há dúvida nenhuma que podemos concluir que Paul Atreides também encontrou a sua alma.

Mas sem querer divagar, “Duna” conta-nos a história do duque Leto Atreides e sua família que deixam o seu planeta de origem Caladan, para habitarem o planeta Arrakis, para o qual o duque foi designado governante. Assim que os seus pés pousam neste árido planeta, percebe que se encontra no centro de muitos interesses e conflitos.

Através de pequenos excertos dos diários da princesa Irulan, vamos conhecendo, capítulo a capítulo, os fios invisíveis que movem este mundo de intrigas, mistérios, poder e sobretudo da construção de um líder, profeta ou quem sabe muito mais do que isso.

Arrakis constitui o único local onde existe a valiosa especiaria Melange que move interesses imperiais. Para além disto apenas possui areia, dunas, temperaturas elevadíssimas, escassez de água e um povo muito agreste, os Fremen. Poucos querem habitar este planeta, mas muitos são os interessados em obter lucro através da comercialização da especiaria.

A sorte não bate à porta dos Atreides e após uma traição amarga, Paul (filho do Duque) e a sua mãe, conhecida como a Dama Jessica e concubina do duque, acabam por procurar refugio no deserto, junto daquele povo que os acolhe com uma reverência, fruto de uma antiga profecia.

Treinado por sua mãe nos ensinamentos mentais das Bene Gesserit e pelos melhores mestres de armas do seu pai, Paul insere-se sem qualquer problema, na vida deste povo que defende o seu planeta contra os seus opressores. Com o desejo de se vingar do seu inimigo, o Barão Harkonnen, que é o mesmo inimigo dos fremen, Paul vê-se na encruzilhada de uma antiga profecia que lhe confere o título de líder e profeta de uma jihad cujo propósito é muito superior ao da simples vingança.

A escrita é fluente e cativa-nos. As personagens estão muito bem construídas e todas elas acabam por nos cativar. Paul, sendo o centro da história e da acção, acaba por reunir à sua volta todo um conjunto de pessoas que lhe irão incutir os valores, sentidos de honra e de responsabilidade que irão formando a sua personalidade.

Tudo se constrói em volta de um conjunto de valores, crenças, formas de vida e de sobrevivência num mundo hostil, mas que é amado e sobre o qual são construídos ideais e onde a esperança de um mundo melhor, de um oásis, prevalece. Todos são importantes, todos são peças fundamentais de um mundo muito bem construído por Frank Herbert.

Na minha opinião, esperava um pouco mais relativamente ao próprio planeta. Esperava saber mais sobre as suas areias, sobre os vermes, sobre as tentativas de plantar outra vegetação e de armazenar água. Gostava de ter conhecido melhor Kynes e o seu sonho. Penso que é uma personagem importante neste contexto, e que foi pouco explorada.

Sendo um livro de FC esperava que desenvolvessem mais estes aspectos cientificamente, que não se ficassem somente pelos aspectos morais, humanos, religiosos e sobretudo pela vingança. No final pergunto a mim mesma : Quem é Paul Atreides? Um líder? Um profeta? Ou um fanático?

Há quem considere este livro como um dos melhores de ficção científica. Apesar de já ter lido alguma coisa nesta área, ainda tenho muito para ler e muitos universos e situações para conhecer, mas do que li, não o considero como tal. Mas esta é a minha opinião, claro e cada um tem os seus próprios gostos e opiniões e somos livres de as expressar.

No entanto há que ter em atenção que foi escrito na década de 60, (década bastante prolifera no desenvolvimento da literatura de FC) e que se encontra ao nível, ou superior, de muitos livros que se publicam hoje em dia nestas matérias.

Recomendo, sem dúvida.


"Há em todas as coisas um padrão que faz parte do nosso universo. Tem simetria, elegância e graça - as qualidades que se encontram sempre naquilo que o verdadeiro artista captura. O padrão encontra-se na mudança das estações, no modo como a areia transpõe um cume, nos aglomerados de ramos do arbusto creosote ou no padrão das suas folhas. Tentamos copiar esses padrões nas nossas vidas e sociedade, procurando os ritmos, as danças, as formas que reconfortam. No entanto, é possível ver perigo na descoberta da derradeira perfeição. É claro que o derradeiro padrão contém a sua própria fixidez. Numa tal perfeição, todas as coisas avançam na direcção da morte."

de "Ditos Coligidos do Muad'Dib" pela Princesa Irulan