Ao começar a ler os livros que compõem “O Livro do Novo Sol”, fiquei com uma dúvida que se prende com esta tarefa de tecer um comentário aos mesmos. Iria comentar em separado, isto é livro a livro ou faria um comentário no final? Optei, como já repararam, pela segunda opção e não me arrependo, uma vez que na minha opinião os livros são um só.
No entanto torna-se importante fazer uma síntese inicial para explicar quais os livros que compõem esta magnifica saga.
“O Livro do Novo Sol” é composto por cinco volumes, sendo que inicialmente eram apenas quatro. Alguns comentadores referem que o quinto volume, editado mais tarde, não fará parte de “O Livro do Novo Sol” ao contrário de outras opiniões. Para mim faz todo o sentido que esteja englobado no seu conjunto, pelo que o tratarei como tal.
Para ficarem com uma pequeníssima ideia apresento as sinopses respectivas:
1 - A Sombra do Torturador
A Sombra do Torturador é um excelente livro de ficção científica extremamente enriquecido pelo recurso a figuras e estilos literários próprios de grandes autores clássicos de literatura. A história de um jovem torturador, pertencente a uma organização que está encarregue de torturar pessoas que lhe são enviadas, num tempo tão longínquo do nosso, onde o sol já está a morrer e a precisar de ser substituído por um novo sol. Existem imensas passagens extremamente ricas e a fazer lembrar outros autores, como por exemplo uma cena de cemitério ao estilo de Dickens, uma máquina de tortura Kafkiana, uma mágica biblioteca do universo de Borges. A ficção científica mistura-se com a fantasia, ambos se misturam com tiradas filosóficas e existencialistas.
2 - A Garra do Conciliador

Severian tem em sua posse uma pedra preciosa, que se crê ser "a garra do conciliador", poderosa relíquia do Mestre do Poder, uma figura lendária de proporções míticas. Com a Espada e a Garra como armas, Severian prossegue a sua viagem para Thrax, a cidade do exilio. No caminho encontra maravilhas como as criaturas simiescas, de corpos irradiantes e peludos e inteligência humana no olhar, que combatem Severian com um ardor e forças tais que é forçoso que o matem; como o bizarro ritual canibalistico que infunde em Severian as memórias e pensamentos de Thecla, a sua amada morta; como a sala de superfícies semelhantes a espelhos, na qual desaparece Jonas, o companheiro de Severian; e como a perturbadora Fonte Vática, à qual Severian atira uma oferenda a fim de conhecer o seu destino.
3 - A Espada do Lictor

Severian, exilado pelo "pecado" da misericórdia, chegou já à Thrax, a Cidade sem Janelas, para onde havia sido enviado como lictor. Mas coisas perturbadoras começaram a acontecer. Severian é perseguido por uma fera mortífera e dirige-se para as montanhas depois de ter sobrevivido a um novo encontro com Agia. Prossegue a fuga acompanhado por um rapazinho, cujos pais tinham sucumbido ao ataque de um alzabo. Mais adiante penetram numa enorme cidade deserta, onde Severian mata um velho inimigo do Conciliador, satisfazendo assim uma velha dívida de vingança daquele que está na origem da sua arma secreta: a garra.
Mas na batalha final, Severian perde o controlo do corpo e vagueia sem consciência, pelo seu próprio e ainda imprevisível futuro.
4 - A Cidadela do Autarca
Severian viaja pelas terras de Urth e é empurrado para o norte por personagens estranhas e terríveis: salamandras, criaturas de luz, nótulos. E, no fim, espera-o o destino supremo que não pode recusar, já que o futuro de Urth depende do regresso do Conciliador, o Novo Sol, há tanto desejado.
5 – Urth do Novo Sol
Severian, agora autarca de Urth, parte a bordo de uma nave do alienígena Hierodules para empreender uma viagem através do espaço e do tempo e enfrentar o supremo desafio: tornar-se no legendário Novo Sol ou morrer.
O Livro do Novo Sol conta-nos a história de Severian, habitante de um mundo a que o autor apelidou de Urth (provavelmente uma distorção de Earth, a Terra). Escrito pelo “seu” próprio punho, Severian leva-nos a empreender uma viagem desde a sua infância, um aprendiz de torturador, até ao seu derradeiro final.
Uma viagem que passa pelo conhecimento do seu mundo e consequentemente pela história do seu próprio planeta. É também, na minha opinião, uma viagem pessoal, à sua voz interior ou às mil vozes que o compõem. Quem é este homem, dono de uma memória infalível, como ele próprio tantas vezes afirma, é a questão que colocamos desde o início até ao fim de cada livro.
Com o desenrolar da história de livro para livro, a narrativa torna-se mais complexa e mais elaborada. As viagens no tempo surgem juntamente com estranhos seres do futuro e alienígenas.
No quinto livro, Severian é confrontado num julgamento do qual depende a vida do seu planeta.
Severian vai desenvolvendo a sua personagem à medida que a sua viagem progride, ele vai aprendendo a cada passo que dá nesse mundo misterioso e a cada mistério que resolve. O seu mundo defronta-se com um problema grave: o que acontecerá se o Sol se apagar definitivamente? É com esta dúvida presente que Severian, no meio de personagens densas e tão fortes quanto ele e no meio de um mundo dos mais complexos e criativos que já vi na escrita de FC ou de fantasia, vai crescendo.
É nesta viagem, que acabamos por acompanhar avidamente, que começamos a descobrir o verdadeiro valor de Gene Wolfe. Na pele de Severian, (personagem riquíssima da qual ficamos aprisionados desde o primeiro instante) o escritor vai-nos enfeitiçando com a sua narrativa, transmitindo-nos um mundo de sensações, de impressões quase fotográficas do mundo exterior, de descrições belíssimas, de cores e sons a cada página.
No entanto, a sua escrita, quase poética, cheia de significados e simbolismos, obriga-nos a uma leitura atenta, o que nos coloca face às realidades descritas no tempo e no espaço e aí somos confrontados entre estas e as memórias infalíveis no nosso personagem. Neste ponto não podemos deixar de reparar que nem sempre elas são coincidentes, o que nos leva a pensar: “ qual a verdade? O que de facto aconteceu?” e aí estamos perante a genialidade e as capacidades estilísticas do escritor. O mundo descrito por Severian, será o verdadeiro mundo de Urth? Quem é quem? E quem é o próprio Severian?
Não me quero alongar muito, nem baralhar ainda mais quem lê este meu comentário e não conhece a obra de Gene Wolfe, pois quem a conhece entenderá perfeitamente o que quero dizer.
A sua escrita é bastante complexa, no entanto fascina-me a sua linguagem e a sua interação com o leitor.
Olhando para trás na história, não consigo situar o que aconteceu em cada um dos livros, mas consigo ver uma história linear, no entanto chegando ao fim, as dúvidas levam-me atrás no enredo e voltei a última pagina a pensar: “vou ter que ler tudo outra vez!”.
Muitíssimo bom, excelente mesmo. Uma das melhores sagas que li até hoje.