sábado, 28 de dezembro de 2013

Para onde vão os guarda-chuvas de Afonso Cruz

“Fazal Elahi não erraria na sua premonição, o universo gosta de equilíbrios completamente desequilibrados, é feito de opostos de mãos dadas, um homem enorme a segurar a mão de uma menina pequenina.”

Sinopse:
“A minha mãe, Sr. Elahi, interrogava-se para onde vão os guarda-chuvas. Sempre que ela saía à rua, perdia um. E durante toda a sua vida nunca encontrou nenhum. Para onde iriam os guarda-chuvas? Eu ouvia-a interrogar-se tantas vezes que aquele mistério, tão insondável, teria de ser explicado. Quando era jovem, pensei que haveria um país, talvez um monte sagrado, para onde iam os guarda-chuvas todos. E os pares perdidos de meias e luvas. E a nossa infância e os nossos antepassados. E também os brinquedos de lata com que brincávamos. E os nossos amigos que desapareceram debaixo das bombas. Haveriam de estar todos num país distante, cheio de objectos perdidos. Então, nessa altura da minha vida, era ainda um adolescente, decidi ser padre. Precisava de saber para onde vão os guarda-chuvas.
- E já sabe? - perguntou Fazal Elahi.
- Não faço a mais pequena ideia, mas tenho fé de encontrar um dia a minha mãe, cheia de guarda-chuvas à sua volta.”

O pano de fundo deste romance é um Oriente efabulado, baseado no que pensamos ter sido o seu passado e acreditamos ser o seu presente, com tudo o que esse Oriente tem de mágico, de diferente e de perverso. Conta a história de um homem que ambiciona ser invisível, de uma criança que gostaria de voar como um avião, de uma mulher que quer casar com um homem de olhos azuis, de um poeta profundamente mudo, de um general russo que é uma espécie de galo de luta, de uma mulher cujos cabelos fogem de uma gaiola, de um indiano apaixonado e de um rapaz que tem o universo inteiro dentro da boca. Um magnifico romance que abre com uma história ilustrada para crianças que já não acreditam no Pai Natal e se desdobra numa sublime tapeçaria de vidas, tecida com os fios e as cores das coisas que encontramos, perdemos e esperamos reencontrar.


Afonso Cruz já me habituou a esperar muito em cada vez que pego num livro dele. A sua escrita é fantasticamente simples e melodiosamente atraente. 

Este livro conta-nos a história de Elahi, um comerciante de tapetes, e das pessoas que vivem com ele, Bibi a sua esposa que andava com os cabelos soltos como pássaros, o filho Salim, o seu primo Badini poeta mudo, a irmã Aminah e Isa.

Desde as primeiras folhas, somos atraídos, quais abelhas pelo néctar das flores, pelas suas palavras, pelas personagens, pelas histórias e sobretudo pela sua filosofia de vida que docemente surge nos diálogos, nas descrições e em todos os sentimentos transpostos nos seus livros.

“Para onde vão os guarda-chuvas” é mais um exemplo notável do seu trabalho. Depois de uma primeira “História de Natal para crianças que já não acreditam no Pai Natal” (sobre a qual não vou comentar nada, porque as imagens são sarcasticamente marcantes) entramos num mundo oriental marcado por preconceitos sociais e religiosos, onde a história de Elahi, comerciante de tapetes, se vai tecendo ponto a ponto “tudo ligado como se fosse um tapete, o primeiro ponto não está separado do último, e se alguém mexer num deles mexe inevitavelmente nos outros.” 

Vamos caminhando lado a lado com as personagens, vamos entrando nas suas vidas e vamos sentido a dor, a mágoa, a tristeza (porque o livro está inundado de tristeza e de solidão) e quando termina ficamos sem saber verdadeiramente como reagir. 

“E Elahi perguntava-se como seria possível que a tradução daquilo que se passava dentro dele fossem apenas umas quantas lágrimas. Que coisa tão mal feita, pensava. Com tanto sofrimento, com licença, deveríamos chorar estrelas, para mostrar como tudo o resto é pequenino comparado com tudo o que nos dói.”

Somos todas peças de xadrez na vida real, ou na história de Elahi, e como num jogo há vitoriosos e derrotados, nem sempre a justiça prevalece, nem sempre vence o melhor e as reacções às consequências destes factos são por vezes terrivelmente desastrosas para os peões do jogo.

A violência encontra expressão em algumas personagens, em alguns acontecimentos e sob algumas formas que marcam a história de um oriente muito mais real que a nossa imaginação pode alcançar. O perdão em Elahi é uma constante, ele sofre e perdoa, esquece e sofre novamente, perdoando e procurando alcançar uma resposta para a sua revolta , nunca deixando de se questionar sobre o “equilíbrio absurdamente/moralmente/esteticamente desequilibrado” existente no mundo.

A angústia que nos torna o coração bem apertado, está patente do início ao fim deste livro. Somos pequenos face a uma sociedade em que os poderosos são os vitoriosos, nada podemos fazer contra eles, apenas deixar que a vida corra, apenas guardar dentro de nós a dor e a solidão.

“Somos mais pesados quando fechamos os olhos. Isso acontece porque o nosso mundo interior é maior do que exterior, pensava Fazal Elahi. A nossa dor não existe fora de nós, o mundo não suportaria esse peso, seria impossível, imagine-se a dor de todos os homens a existir no mundo exterior. Seria uma calamidade e não haveria gravidade capaz de fazer os planetas andar à volta das estrelas. Nós somos muito mais pesados do que o universo que nos rodeia. Temos a dor.”

Um excelente livro que recomendo, deixando-nos a pensar em que mundo realmente vivemos!



6 comentários:

  1. Olá Caminhante,

    Bem que dizer, demorou a publicares algo aqui mas com este comentário está mais que perdoado tão grande ausência (digo isto porque adoro verdadeiramente o teu blog, quem me dera ter 1/10 da tua capacidade de comentar )


    E que dizer mais, um escritor com muito talento, criativo e que está mais do que na hora conhecer, acredito que seja uma leitura deveras cativante, obrigado pela sugestão :)

    Sugeres este livro como estreia do escritor ?

    Bjs e aproveito para te desejar bom ano :)

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    1. Olá Fiacha
      Obrigada pelas tuas palavras, deixas-me sem palavras :)
      Sim tens de ler Afonso Cruz. Este livro lê-se muito bem, capítulos pequenos, apesar de ter 620 páginas.
      Também tenho Os livros que devoraram o meu pai, é mais pequeno e igualmente interessante. Mas gostei mais deste, e penso que é uma boa estreia com o escritor.
      Se quiseres já sabes, posso-te emprestar.
      Um bom ano para ti também :)
      Já tens novos objectivos literários para o próximo ano?
      Bjs

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  2. Mas é verdade São ainda hoje em Obidos o teu talento para a escrita foi comentado, alem da boa pessoa que és claro, bem mas já estou a ser lamechas :D

    A ver se consigo em 2014 sabes as minha limitações devido a parceria que tenho no blog, é bom sem duvida mas que me obriga a ler os livros que me enviam logo posso dizer que quero conhecer ainda melhor os livros de Romance Histórico da SDE, pois tenho sido surpreendido muito pela positiva ;)

    Este é o meu principal objetivo e claro ler livros de Fantasia deles.

    Se não fosse isso colocaria como objetivo ler livros de FC que como sabes adoro, tenho pena de não o conseguir e claro tentar fazer o que aqui fizeste divulgar bons nomes que temos por cá e o Afonso Cruz é um excelente exemplo disso :)

    E por ai já tens objetivos traçados ?

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    1. bem :) outra vez obrigada pelas tuas palavras :)
      Ainda não tenho objectivos traçados para 2014, se bem que estou a pensar ler FC e contos, muitos contos, eh eh pelas razões óbvias, mas ainda não pensei como deve ser.
      Já percebi que não posso ser muito restritiva com os objectivos porque surgem coisas novas e aliciantes e desviamos caminho (o que é bom ).

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  3. Este é um livro que me atrai irremediavelmente. Mas fiquei tão zangada com o final... Foi o primeiro livro do Afonso Cruz que li mas já tenho outros à espera.
    Boas leituras e um bom 2014
    Patrícia

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    1. Bem vinda Patricia :)
      Sem dúvida que o final nos deixa zangadas, também pelo meio fiquei irritada e durante dois ou três dias não peguei nele, até que não resisti e continuei a ler. (não digo mais para não criar spoilers)
      Afonso Cruz é um excelente escritor, no entanto os seus livros tem sempre esta nostalgia, esta mágoa ...
      bom ano de 2014 e boas leituras
      São

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