domingo, 14 de julho de 2013

Contos do Nascer da Terra de Mia Couto

“Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
— Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.”


Falar de um livro de Mia Couto, ou melhor escrever sobre um livro de Mia Couto é uma tarefa complicada. Não há forma de transmitir o sentimento que nos invade ao lermos os seus contos escritos naquele linguajar tipicamente moçambicano. Quem lá esteve, é invadido pela nostalgia dessas falas, dessas ligações entre gentes e entre terras.

Neste livro “Contos do Nascer da Terra” são-nos apresentados 35 contos, de tradição popular, que nos falam de um povo, da sua identidade e sobretudo das suas raízes e da sua ligação à terra. 

São histórias que nos despertam um sorriso e que nos fazem pensar na beleza natural do mundo. Mia Couto consegue captar estes fragmentos naturais, ingénuos e belos, transformando-os em palavras que nos deliciam.

Um livro para ir lendo devagar, conto a conto, degustando cada história sem pressas, sem limites.

Deixo-vos mais um conto:

“Miudádivas, pensatempos

(Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)

Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.

Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
Adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.

Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.

Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que rouba mecanismos de viver.

Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?

Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total inicio,
redundante gravidez do mundo.

Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo
Só a coruja atrapalha a eternidade.

Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças da minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa á margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cega para razões.
Sei só escrever palavras que não há.

Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.”


8 comentários:

  1. Bonito ^_^

    Onde posso encontrar os contos A Caminhante?

    Os seus comentários são sempre muito doces, gostei muito..:D

    Beijinhos...

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    1. Olá Carla
      Obrigada pelas tuas palavras :)
      Os contos encontram-se nos livros do Mia Couto, neste que comentei. Eu copiei o comentário estes dois, não sei se há alguma versão digital disponível.
      Mas posso emprestar-te o livro se quiseres.
      Acho que irás gostar
      Beijinhos

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  2. Olá,

    Por sugestão de uma amiga caminhante, li finalmente este ano este escritor e em boa hora o fiz sem duvida, pois tal como é referido é um escritor excelente, que transmite muito do que é o seu pais e o seu povo, com uma escrita muito propria e que acabamos por nos acostumar.

    Claro que para quem conhece um pouco Moçambique, como é o teu caso, penso que a leitura dos livros, ainda se torna mais gratificante/interessante pois acabas por rever certas expressões e modos de vida do povo Moçambicano, rico em lendas e histórias misteriosas. Penso que estes contos devem ser mais um excelente exemplo destas lendas e histórias tão misteriosas, tão características de África :D

    Gostei imenso do teu comentário e conto ler mais do Mia Couto, sem duvida um escritor diferente e especial :)

    Bjs e boas leituras

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    1. Olá Fiacha
      obrigada pelas tuas palavras. Tens toda a razão, um escritor muito bom e um retrato de África mais precisamente de Moçambique.
      E neste livro a ligação à terra, às raízes é muito forte e como sabes agrada-me bastante a temática.
      Quando o quiseres ler já sabes :)

      Bjs e boas leituras para ti também
      ,

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  3. Super lindo e maravilhoso esse poema da Mia Couto,adorei. Boas leituras querida. Eu agora vou ler um coração simples que contém 93paginas de pura magia. Beijinhos fofinhos. Quero dizer-te também que adorei o conto da lili do manuel alves,gostei mesmo muito. Fica bem. http://pontodecruzdamafalda.blogspot.pt

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    1. Olá Mafalda
      bem vinda de novo, gosto de te ver por cá :) Posso saber que livro estás a ler? deixas-me curiosa....
      Quanto aos livros do Manuel Alves, experimenta ler os outros, sobretudo "A invenção de um conto de fadas", irás gostar.
      Beijinhos, espero ver-te mais vezes :)

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    2. O livro que estou a ler chama-se um coração simples,comecei hoje,estou já na pagina 52. Já li uma das histórias do livro,um belo conto. Amanhã vou tentar ler a segunda. Beijinhos!! No meu outro blogue tenho um poema dedicado aos avós,gostaria que visses,é bem lindo. Fica com deus!! http://mafaldinhaarte.blogspot.pt

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