segunda-feira, 28 de março de 2022

Exercício de escrita "O último dia de um condenado"

 





Hoje trouxeram-me um vestido.

Não sei porque razão querem que o vista, se tudo vai arder. Devem achar que o meu velho vestido não é apropriado, está sujo e roto. Mas é com ele que vou, pois é meu e se serviu para estar, durante todo este tempo, neste antro imundo e malcheiroso também servirá para me acompanhar até ao fim.

O ser humano é vil e egoísta! Como é possível que não entendam a mais básica das ciências, a mais antiga de todas as religiões. A minha avó ensinou-me a respeitar a natureza e a conhece-la como a palma da minha mão, a saber usar aquilo que ela nos dá para vivermos melhor.

A calêndula que apazigua as gripes e constipações, a doce-lima os males do estomago, a valeriana que nos ajuda a conciliar o sono em noites complicadas, a casca da bétula para irritações na pele e tantas outras que podem ajudar-nos. Mas para esses que nada compreendem do mundo que os rodeia, todo este conhecimento é bruxaria. Gentalha importante, mas pobre de espirito,

Sei que os minutos, passam e dentro em pouco tudo terminará para mim. Lá fora oiço o burburinho do povo que se aproxima para verem a bruxa arder na fogueira. Até esses que iam ter comigo à procura de mezinhas que lhes acalmassem as dores ou o sofrimento, hoje estão aqui para verem o espetáculo.

Sinto as botas de couro a calcorrearem o andar de cima.

Aproxima-se a hora e eu respiro fundo. Penso na minha vida e vejo o sorriso do meu filho, as gargalhadas dele quando brincávamos ao sol, dando cambalhotas no prado e correndo em direção ao riacho, onde mergulhávamos para ver os peixes a fugirem espavoridos. 

Lembro-me das histórias que lhe contava “era uma vez um rapaz que vivia numa floresta longínqua…”, “o que é longínqua mamã? “perguntava com a sua voz doce.

Agora oiço as chaves a baterem entre si, fazendo eco nas masmorras. Os guardas falam baixo, mas as suas vozes são possantes e ouvem-se bem.

Lembro-me quando lhe ensinei a ler e ele descobriu um mundo gigante à sua volta, queria sempre saber mais e mais. Cresceu muito depressa e em pouco tempo deixei de ter aqueles bracinhos fofos que me envolviam e os beijos molhados pelas lágrimas causadas pelo joelho esfolado ou pelo pico no dedo. Ah …. Agora sinto falta da barba que desponta e que me pica quando, num rápido momento de ternura, ainda me envolve com os seus braços fortes e me deposita um beijo no rosto.

Abrem-me a porta e levanto-me. Não digo nada, sigo em frente, no meio deles. Solto o meu cabelo que cai pelas costas, como um xaile vermelho que me aconchega de volta ao lar.

Lá fora, o sol apanha-me desprevenida, fecho os olhos por um momento e desoriento-me. Sinto a mão do guarda a agarrar-me no braço com força e dou um puxão, soltando-me e caminho em direção à pira que espera por mim.

Atam-me com força, devem ter medo que faça um feitiço e que saia dali a voar montada numa vassoura. Uma multidão ruidosa assiste. Olho em frente e vejo os rostos sedentos, querem sangue, querem espetáculos macabros que os façam esquecer a miséria da humanidade.

Vejo-o! No meio da multidão, sério com o seu rosto lindo. Tem uma mochila às costas, percebo que vai partir.  As lágrimas correm silenciosas pelas faces que tantas vezes beijei. Sorrio-lhe e sinto um calor imenso.

Fecho os olhos, guardo essa recordação dentro de mim e sinto-me livre para partir com ele, correndo o mundo à procura de novas aventuras.  


Obrigada Lara Barradas, Laboratório de escrita (https://www.laboratoriodeescrita.com/)

quarta-feira, 2 de março de 2022

Março em Sintra






Março, mês da primavera e já se sente no ar esta doce estação.

Naqueles breves momentos do dia em que o vento ou a brisa ligeira se torna quente e o sol brilha aquecendo-nos a alma, num céu imenso cheio de azul, ouvem-se os pássaros e as pessoas passam com um sorriso no rosto.

Mas Sintra não é um local de primavera.

É verde, da cor da folhagem das árvores que ladeiam as ruelas íngremes que se cruzam e lançam os seus visitantes à descoberta dos seres antigos que por aqui vagueiam.

É da cor da paisagem, mistura-se com o musgo que cobre as pedras antigas que povoam os caminhos e meandros da serra e os muros das velhas casas da vila.

Apenas as glicínias descem em cachos lilases pelos alpendres, muretes e pérgolas das casas senhoriais, com os seus troncos retorcidos e antigos, deixando por alguns momentos o seu cheiro doce e almiscaro no ar.

A serra espreita, mergulhada no seu manto feito de neblina cinza e pedaços de sonhos que descem em lufadas sobre a vila. Nos velhos trilhos, pelo cair da noite, sussurram-nos vozes profundas que contam histórias, lendas tão antigas que o tempo já se esquecera delas.

É uma alma antiga que espera serenamente pela bruma mágica e os seus mistérios.

Em Sintra vive-se e sente-se.