quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O Mistério da Estrada de Sintra de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão



SINOPSE

Naquele que é justamente considerado o primeiro romance policial português, conta-se a história de um médico que regressa de Sintra acompanhado por um amigo. A meio do caminho, ambos são raptados por um grupo de mascarados, que os levam para um prédio isolado onde aparecera um homem morto. A partir daí, os acontecimentos sucedem-se em catadupa. Quem é o morto e quem o matou? E porquê? Quem era a mulher com quem ele se encontrava, e quem são os mascarados que pretendem proteger a sua honra? A história foi publicada no Diário de Notícias entre Julho e Setembro de 1870 sob a forma de cartas anónimas, e foram muitos os que se assustaram com os acontecimentos narrados. Só no final é que Eça de Queirós e Ramalho Ortigão admitiram tratar-se de uma brincadeira e que eram eles os autores das cartas.

O Mistério da Estrada de Sintra foi publicado em forma de livro nesse mesmo ano. Em 1885, houve uma segunda edição revista por Eça de Queirós, que é a utilizada na presente edição.


Maio de 2020 foi o tempo de reler Eça de Queirós. Há muito tempo que não pegava num livre deste autor e escolhi aquele que já há algum tempo despertava a minha curiosidade. Confesso que gostei muito. 

O livro retrata a história de um crime,  muito bem desenvolvida através das missivas anónimas que são enviadas ao jornal Diário da Noticias, por volta de 1870. Estas vão sendo publicadas e com elas as respostas às questões que envolvem o já  citado crime. com estas publicações a história vai-se desenvolvendo e cativando os leitores. 

A história começa com o rapto de um médico e um escritor, que regressavam a Lisboa, já de noite, pela antiga Estrada de Sintra (hoje corresponde à estrada de Benfica que antigamente ligava a vila à capital). Quatro homens encapuçados, levam- nos para uma casa isolada onde se encontra um cadáver de um oficial britânico, com o objetivo  de que confirmassem a sua morte. 

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão embarcaram na aventura deste livro, movidos por uma vontade de abanar Lisboa com uma historia rocambolesca que retrate a sociedade da época, as intrigas e mexericos da aristocracia  que vivia em Lisboa e se passeava por Cintra. 

Muito bem escrita e com algum sentido de humor que Eça tão bem consegue transmitir, foi um ponto de partida para descobrir muito mais sobre este autor, que andava fugido da minha estante. 






sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Gui


 

Gui era apenas um menino que corria pelos campos. O mundo queria que ele fosse muito mais, mas ele era somente um menino.

Assim que o sol despertava e se erguia preguiçoso no horizonte, Gui acordava, saltava do seu colchão, pegava num bocado de pão duro e saía, correndo e comendo pelas ruas á procura do dia que chegava.

No verão, não havia escola, por isso ficava sozinho a vaguear pelas ruas da cidade ou arriscava uma aventura pelos campos que a envolviam. Roubava uma fruta aqui ou ali que mordiscava com verdadeiro deleite. O seu dia escoava entre o alcatrão, os telhados das velhas casas senhoriais e os campos abandonados, onde à sombra das árvores, construía o seu reino e comandava os seus soldados, na defesa da cidade. Á tardinha, o Sr. Joaquim do café Central, dava-lhe uma caixa com dois ou três bolos que já não ia vender e ele levava para casa com mil cuidados.

Tinha vontade de os comer, mas guardava a vontade no bolso de trás das calças e esperava pacientemente pela mãe, para dividir com ela o seu tesouro.

Após a refeição que a mãe preparava com muito carinho, sentavam-se no velho sofá da sala e dividiam a oferta do Sr. Joaquim e esse era o melhor momento do dia. Contavam um ao outro as peripécias, entre mordidelas num pastel de nata ou numa bola de Berlim e riam-se das caras enfarinhadas de uns biscoitos de limão ou canela.

Os dias passavam rápidos no Verão, Gui apenas enfiava uma camisola de alças e uns calções e assim andava pelas ruas, sem se preocupar com horários a cumprir, deveres a fazer ou o frio a entrar pelas solas esburacadas das suas botas de inverno.

Os dias eram sempre iguais, mas a liberdade é um sonho que poucos têm e Gui aprendera que era o seu bem mais precioso.

Mas um dia algo mudou. Nas suas deambulações solitárias, Gui encontrou um objecto comprido que de imediato não soube para que servia. Mais tarde a mãe explicou-lhe que era uma flauta e que através dela se poderiam tocar melodias tão fantásticas, que trariam até ele os sonhos mais belos que poderia imaginar. Lembrando-se das aulas de música da escola, tentou ensinar-lhe como colocar os dedos e os sons que se poderiam soltar daquele singelo instrumento.

Gui estava encantado. Não entendia nada de música, mas algo tocou o seu coração naquele momento. Um sentimento que ele não compreendia assaltou-o de repente perante aquele som melodioso. Nos dias seguintes ele foi treinando, aperfeiçoando o som que saía por vezes esganiçado, mas que a pouco e pouco ia dando lugar a uma melodia suave e muito bela.

Todos os dias, ele sentava-se nas escadas do prédio onde morava e tocava. Miró, o gatito companheiro no passeio pelos telhados, deixava-se ficar por ali como um espectador atento ao desenrolar deste novo entretém do seu amigo. Ele nem entedia muito bem porque Gui estava tão sossegado e não aproveitava para dar uma voltinha pelos telhados e pelos campos, mas o que era certo é que algo se passava ali de diferente.

O menino não sabia tocar, mas o seu coração sabia e desta forma compunha, sem o saber, uma das mais belas músicas que se ouvira até então. A cada nota que se soltava, um pedacinho de magia libertava-se no ar e a verdadeira aventura começava.

O seu coração de criança, inocente e feliz, criava um mundo onde ele se refugiava. Pequenos seres surgiam deslizando pelo som de cada nota. Eram duendes travessos, elfos sorridentes, pequenos póneis alados que se elevavam pelos céus, princesas e guerreiros e trolls enormes que tudo queriam destruir. Mas a música soava forte e surgia um dragão que voando pela rua queimava, com o seu bafo de fogo, tais criaturas maldosas.  Depois tudo terminava, e estes seres recolhiam-se de novo na pequena flauta, esperando por um novo momento para se soltarem e encherem a rua com as suas aventuras.

Miró assistia a tudo com um sorriso muito próprio, como só os gatos conseguem ter.