sábado, 20 de julho de 2013

Os Comedores de Pérolas de João Aguiar

Sinopse

Jornalista de profissão e escritor nas horas vagas, Adriano descobre-se, de repente, na meia-idade. A vida não passa de um jogo extremamente cruel e ele dá consigo "sentado à beira da água opaca, a fumar o cachimbo e a morder um caule de erva que sabia a fénico"… O resultado do choque é um suicídio frustrado e uma fuga, sem esperança para Macau.

Em Macau, descobre um passado de que nunca suspeitara e descobre também a angústia sorridente da próxima reintegração na China. Mas a "pérola do Oriente" reserva-lhe uma outra surpresa: mergulhado brutalmente numa intriga que já fez vários mortos, Adriano é obrigado a esquecer as reflexões pessimistas sobre a vida e o mundo, para ceder ao instinto primitivo de lutar pela sua própria sobrevivência.


Confesso, o que para muitos já não é novidade, que gosto bastante de ler João Aguiar. O que tenho lido deste autor torna-se sempre uma agradável surpresa. Por mais que conheça o seu estilo e muitos dos seus livros, acabo por ser surpreendida cada vez que começo a ler um. Não sendo esta uma das suas obras mais destacadas e conhecidas, constituiu uma leitura simples mas agradável, que nos agarra ao longo de toda a história.

Desta vez “Os comedores de pérolas”, escrito em 1992, levam-nos até Macau, nas vésperas da transferência da administração portuguesa para a China. Este território que muitos apelidavam de “a pérola” do oriente, é aqui comparado à anedota histórica da Cleópatra em que esta dissolveu em vinagre uma pérola e depois bebeu esta mistura para provar a Marco António que era mais gastadora do que ele. Aqui a alegoria visa recordar-nos da ausência de esforço por parte dos nossos governantes em salvaguardar esta pérola através dos tempos, acabando por nos termos convertido em “comedores de pérolas” imitando a rainha egípcia.

A escrita é-nos apresentada em forma de diário onde Adriano, tal como o próprio autor, jornalista e romancista, nos vai dando a conhecer, todo o desenrolar de uma investigação, aparentemente simples, mas que se revela um poço de segredos incómodos para muitos.

A recuperar de um esgotamento, chega a Macau para investigar o espólio do comendador Wang Wu, que viveu no século XIX. Com o desenrolar do estudo, verifica-se que Wang Wu e a sua esposa não eram quem se pensava. A investigação paga pelo neto de Wang Wu, um milionário que vive em Hong Kong, acaba por se revelar um jogo de interesses em que Adriano vai descobrindo a mesquinhez da alma humana num sonho oriental. 

Um verdadeiro cenário de intriga policial que nos mantém presos até ao fim, à espera da resolução de todos os enigmas.

Este é o primeiro volume de uma trilogia, que se segue com “O Dragão de Fumo” e “A Catedral Verde”. No entanto qualquer um deles pode ser lido isoladamente. Todos os três livros contam episódios da vida de Adriano Correia e passam-se todos em Macau, em épocas distintas.

domingo, 14 de julho de 2013

Contos do Nascer da Terra de Mia Couto

“Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
— Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.”


Falar de um livro de Mia Couto, ou melhor escrever sobre um livro de Mia Couto é uma tarefa complicada. Não há forma de transmitir o sentimento que nos invade ao lermos os seus contos escritos naquele linguajar tipicamente moçambicano. Quem lá esteve, é invadido pela nostalgia dessas falas, dessas ligações entre gentes e entre terras.

Neste livro “Contos do Nascer da Terra” são-nos apresentados 35 contos, de tradição popular, que nos falam de um povo, da sua identidade e sobretudo das suas raízes e da sua ligação à terra. 

São histórias que nos despertam um sorriso e que nos fazem pensar na beleza natural do mundo. Mia Couto consegue captar estes fragmentos naturais, ingénuos e belos, transformando-os em palavras que nos deliciam.

Um livro para ir lendo devagar, conto a conto, degustando cada história sem pressas, sem limites.

Deixo-vos mais um conto:

“Miudádivas, pensatempos

(Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)

Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.

Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
Adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.

Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.

Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que rouba mecanismos de viver.

Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?

Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total inicio,
redundante gravidez do mundo.

Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo
Só a coruja atrapalha a eternidade.

Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças da minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa á margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cega para razões.
Sei só escrever palavras que não há.

Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.”


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Lili de Manuel Alves

Sinopse

Lili acabara mesmo de mudar de casa. Novamente. Era a segunda vez, em menos de um mês, que os pais encaixotavam tudo para voltarem a desencaixotar. Na primeira casa, ficaram quase duas semanas, e Lili já começava a conhecer todos os cantos secretos. Só lhe faltava explorar a cave. Mas voltaram a encaixotar tudo dois dias depois de a mãe ter começado a escrever o livro novo. Durante duas noites seguidas, Lili acordou a gritar com um pesadelo horrível. Sonhou com um homem alto muito baixo que tinha tanto de gordo como de magro. Lili chamou-lhe o Homem Que Muda. No pesadelo, aparecia-lhe cego, mas olhava-a nos olhos. Era mudo, mas falava. Dizia sempre a mesma coisa: não desças à cave.

Mais um conto de Manuel Alves. E atrevo-me a dizer que, até agora, foi o que gostei mais de tudo o que li deste autor. 

A sinopse refere o essencial da história, falar mais sobre ela é contar o que não se deve e estragar a surpresa a quem lê. Por esta razão não o vou fazer.

Vou apenas comentar o porquê de ter gostado tanto desta pequena história que nos fala de sonhos, pesadelos, de amizade e de confiança. E sobretudo de medos, de vencermos os nossos medos, porque todos os temos.

Para muitos “A Invenção de um conto de fadas” do autor, é uma referência e é muito bom. Já no meu comentário sobre o mesmo, referi o quanto tinha gostado, a história está muito bem desenvolvida. Mas não me identifiquei com os personagens, não criei empatia com as suas opções, com o seu modo de vida. 

É verdade que cada um tem a sua maneira própria de ser e de se identificar com determinadas situações ou histórias. Eu gosto bastante de contos e de contos infantis, pelo que todo o tema me seduziu de imediato.

Este conto vem acompanhado de uns desenhos bem engraçados feitos pelo próprio autor.

Em ” Lili”, achei fascinante a dualidade do Homem Que Muda, e toda a construção da história na história que se vai construindo. O final é importante para a mensagem que se pretende passar e está bem conseguida. A linguagem é deliciosa, os diálogos são carinhosos e ao mesmo tempo cheios de subtilezas.

É uma história positiva, em todos os aspectos, na minha opinião e é essa a imagem que temos de passar às nossas crianças, quer as mais pequenas, quer aquelas que vivem dentro de nós. 

Deixo-vos um pequeno excerto (sem spoilers) : 

"Lili manteve um sorriso até a mãe fechar a porta. Subiu o queixo e estudou a variedade de cinzentos que separavam as nuvens boazinhas das zangadas. As nuvens de tonalidades clarinhas eram boazinhas. As nuvens mais carregadas eram zangadas. Eram as que faziam chover muito tempo até aborrecerem dias inteiros.
— Não há só coisas boas por cima da cabeça — disse ela, num sussurro quase tão secreto como um pensamento que lhe fez mover os lábios.
Sentiu o toque de uma mão cuidadosa no ombro e um sussurro chegou-lhe ao ouvido.
— Não subas ao sótão — disse o Homem Que Muda.
Lili voltou-se num susto de curiosidade. O Homem que Muda desapareceu como névoa que ela dissipou com a meia volta do corpo. O Homem Que Muda falava-lhe sempre com voz de canela. Cada palavra lembrava-lhe o cacau quente que a mãe fazia, uma receita secreta herdada da avó, que polvilhava o creme na superfície do cacau com uma pitadinha de canela que deixava um cheirinho bom no ar. Era assim a voz do Homem Que Muda. A única coisa nele que nunca mudava."

Este conto encontra-se gratuitamente em https://www.smashwords.com/books/view/331723