segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Um exercício de escrita com aromas do oriente

 

Eu nem queria acreditar. Nessa manhã algo deve ter espantado o galo da vizinha, pois nem o seu cantar me acordou como habitualmente.

Levantei-me, meio destrambelhado, já o sol ia bem alto no firmamento quando rapidamente tentei, em vão, recuperar o tempo perdido. Ainda sentia o efeito de ter dormido demais e sonhado muito, quando coloquei os pés fora de casa e me desloquei até ao trabalho.

O dia escoou-se no tempo que lhe é habitual, lento e quente nesse dia. Mas após umas boas horas estava de regresso a casa, feliz pelos momentos que me esperavam no conforto da casa, junto da minha família. Os finais do dia eram simpáticos e acolhedores.

O sol ainda lançava os seus raios sobre o meu para-brisas quando o carro da frente parou repentinamente. Coloquei o pé no travão, no seguimento de um reflexo bem oleado e perguntei-me porque raio parava ele assim no meio da rua.

Foi quando as vi. Eram chamuças enormes, esses pasteis indianos com imensas especiarias recheados de carne, legumes ou mesmo de camarão, bem saborosos por sinal. Passeavam-se pelas ruas, de lá para cá e de cá para lá, bamboleando-se como se estivessem numa passerelle, vaidosas e inchadas, as pessoas trincavam-nas ali mesmo, à frente de qualquer transeunte e elas soltavam imensas gargalhadas como se lhes estivessem a fazer cocegas.

Devia estar a alucinar, nem queria acreditar no que estava a acontecer. Mas era real, uma delas aproximou-se da minha janela e senti de imediato o cheiro a cravinho, gengibre, noz moscada e talvez mesmo coentros. Esfregou-se de encontro ao meu braço e murmurou “ dá-me uma trinca, sou bem saborosa”, afastando-se em seguida.

O carro da frente avançou, uma vez que a procissão das chamuças ia passando para trás de nós e eu rapidamente me pus a caminho.

Cheguei a casa e nesse momento lembrei-me que tinha combinado chegar cedo pois iriamos ter uns amigos para jantar connosco. Lena, a minha mulher estava atarefadíssima e ao ver-me o seu rosto ficou vermelhíssimo de tão irritada que ficou.

- Andaste no petisco com os teus colegas, tresandas a especiarias e esqueceste-te do jantar com o Luis e a Marcela? Ao menos podias ter trazido as chamuças de camarão que te pedi!

Ah, mais chamuças… mas estava a ser perseguido por elas! A minha cara devia ter mostrado o espanto e horror que ia dentro de mim, porque a minha mulher pegou no seu saco do tricot e atirou um novelo de lã na minha direção.

- Ui! – exclamei – Nem acredito que me chicoteaste com um fio de lã.

Nesse momento, o galo da vizinha entoou o seu canto madrugador.



publicado no https://www.laboratoriodeescrita.com/conta-me-historias

Obrigada Lara Barradas 


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O Mistério da Estrada de Sintra de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão



SINOPSE

Naquele que é justamente considerado o primeiro romance policial português, conta-se a história de um médico que regressa de Sintra acompanhado por um amigo. A meio do caminho, ambos são raptados por um grupo de mascarados, que os levam para um prédio isolado onde aparecera um homem morto. A partir daí, os acontecimentos sucedem-se em catadupa. Quem é o morto e quem o matou? E porquê? Quem era a mulher com quem ele se encontrava, e quem são os mascarados que pretendem proteger a sua honra? A história foi publicada no Diário de Notícias entre Julho e Setembro de 1870 sob a forma de cartas anónimas, e foram muitos os que se assustaram com os acontecimentos narrados. Só no final é que Eça de Queirós e Ramalho Ortigão admitiram tratar-se de uma brincadeira e que eram eles os autores das cartas.

O Mistério da Estrada de Sintra foi publicado em forma de livro nesse mesmo ano. Em 1885, houve uma segunda edição revista por Eça de Queirós, que é a utilizada na presente edição.


Maio de 2020 foi o tempo de reler Eça de Queirós. Há muito tempo que não pegava num livre deste autor e escolhi aquele que já há algum tempo despertava a minha curiosidade. Confesso que gostei muito. 

O livro retrata a história de um crime,  muito bem desenvolvida através das missivas anónimas que são enviadas ao jornal Diário da Noticias, por volta de 1870. Estas vão sendo publicadas e com elas as respostas às questões que envolvem o já  citado crime. com estas publicações a história vai-se desenvolvendo e cativando os leitores. 

A história começa com o rapto de um médico e um escritor, que regressavam a Lisboa, já de noite, pela antiga Estrada de Sintra (hoje corresponde à estrada de Benfica que antigamente ligava a vila à capital). Quatro homens encapuçados, levam- nos para uma casa isolada onde se encontra um cadáver de um oficial britânico, com o objetivo  de que confirmassem a sua morte. 

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão embarcaram na aventura deste livro, movidos por uma vontade de abanar Lisboa com uma historia rocambolesca que retrate a sociedade da época, as intrigas e mexericos da aristocracia  que vivia em Lisboa e se passeava por Cintra. 

Muito bem escrita e com algum sentido de humor que Eça tão bem consegue transmitir, foi um ponto de partida para descobrir muito mais sobre este autor, que andava fugido da minha estante. 






sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Gui


 

Gui era apenas um menino que corria pelos campos. O mundo queria que ele fosse muito mais, mas ele era somente um menino.

Assim que o sol despertava e se erguia preguiçoso no horizonte, Gui acordava, saltava do seu colchão, pegava num bocado de pão duro e saía, correndo e comendo pelas ruas á procura do dia que chegava.

No verão, não havia escola, por isso ficava sozinho a vaguear pelas ruas da cidade ou arriscava uma aventura pelos campos que a envolviam. Roubava uma fruta aqui ou ali que mordiscava com verdadeiro deleite. O seu dia escoava entre o alcatrão, os telhados das velhas casas senhoriais e os campos abandonados, onde à sombra das árvores, construía o seu reino e comandava os seus soldados, na defesa da cidade. Á tardinha, o Sr. Joaquim do café Central, dava-lhe uma caixa com dois ou três bolos que já não ia vender e ele levava para casa com mil cuidados.

Tinha vontade de os comer, mas guardava a vontade no bolso de trás das calças e esperava pacientemente pela mãe, para dividir com ela o seu tesouro.

Após a refeição que a mãe preparava com muito carinho, sentavam-se no velho sofá da sala e dividiam a oferta do Sr. Joaquim e esse era o melhor momento do dia. Contavam um ao outro as peripécias, entre mordidelas num pastel de nata ou numa bola de Berlim e riam-se das caras enfarinhadas de uns biscoitos de limão ou canela.

Os dias passavam rápidos no Verão, Gui apenas enfiava uma camisola de alças e uns calções e assim andava pelas ruas, sem se preocupar com horários a cumprir, deveres a fazer ou o frio a entrar pelas solas esburacadas das suas botas de inverno.

Os dias eram sempre iguais, mas a liberdade é um sonho que poucos têm e Gui aprendera que era o seu bem mais precioso.

Mas um dia algo mudou. Nas suas deambulações solitárias, Gui encontrou um objecto comprido que de imediato não soube para que servia. Mais tarde a mãe explicou-lhe que era uma flauta e que através dela se poderiam tocar melodias tão fantásticas, que trariam até ele os sonhos mais belos que poderia imaginar. Lembrando-se das aulas de música da escola, tentou ensinar-lhe como colocar os dedos e os sons que se poderiam soltar daquele singelo instrumento.

Gui estava encantado. Não entendia nada de música, mas algo tocou o seu coração naquele momento. Um sentimento que ele não compreendia assaltou-o de repente perante aquele som melodioso. Nos dias seguintes ele foi treinando, aperfeiçoando o som que saía por vezes esganiçado, mas que a pouco e pouco ia dando lugar a uma melodia suave e muito bela.

Todos os dias, ele sentava-se nas escadas do prédio onde morava e tocava. Miró, o gatito companheiro no passeio pelos telhados, deixava-se ficar por ali como um espectador atento ao desenrolar deste novo entretém do seu amigo. Ele nem entedia muito bem porque Gui estava tão sossegado e não aproveitava para dar uma voltinha pelos telhados e pelos campos, mas o que era certo é que algo se passava ali de diferente.

O menino não sabia tocar, mas o seu coração sabia e desta forma compunha, sem o saber, uma das mais belas músicas que se ouvira até então. A cada nota que se soltava, um pedacinho de magia libertava-se no ar e a verdadeira aventura começava.

O seu coração de criança, inocente e feliz, criava um mundo onde ele se refugiava. Pequenos seres surgiam deslizando pelo som de cada nota. Eram duendes travessos, elfos sorridentes, pequenos póneis alados que se elevavam pelos céus, princesas e guerreiros e trolls enormes que tudo queriam destruir. Mas a música soava forte e surgia um dragão que voando pela rua queimava, com o seu bafo de fogo, tais criaturas maldosas.  Depois tudo terminava, e estes seres recolhiam-se de novo na pequena flauta, esperando por um novo momento para se soltarem e encherem a rua com as suas aventuras.

Miró assistia a tudo com um sorriso muito próprio, como só os gatos conseguem ter.

 

sábado, 13 de fevereiro de 2021

"Outrora e Outros Tempos" de Olga Tokarczuk

 


SINOPSE

Outrora é uma aldeia polaca situada no centro do mundo e protegida por quatro arcanjos. Esta mítica aldeia, onde a relva sangra, a roupa tem memória e os animais falam por imagens, é povoada por personagens excêntricas e inesquecíveis - humanas, animais, vegetais, minerais - cujas existências obedecem aos ciclos das estações e à inexorável passagem do seu Tempo, mas também aos acontecimentos externos.

Durante três gerações, este microcosmo instável e arrebatador assiste ao eclodir de uma Grande Guerra, à Crise, a uma nova e Segunda Grande Guerra, à Ocupação Nazi, à invasão Russa, e ao choque entre a modernidade e a natureza, espelhando a dramática história da Polónia do século XX.

Primeiro grande sucesso de Olga Tokarczuk, vencedor do prestigiado Prémio da Fundação Koscielski, Outrora e Outros Tempos é um romance histórico, filosófico, mitológico e, no dizer da crítica, «um clássico da literatura europeia contemporânea».

A autora sempre quis escrever um livro como este: «A história de um mundo que, como todas as coisas vivas, nasce, cresce e depois morre… Cozinhas, quartos, memórias de infância, sonhos e insónia, reminiscências e amnésia fazem parte dos seus espaços existenciais e acústicos, compondo as diferentes vozes da sua história.»


 

Outrora e Outros Tempos” foi o primeiro livro (e único até à data) que li desta autora polaca, vencedora do Prémio Nobel de Literatura de 2018. Mas posso-vos referir, desde já que vou querer ler muito mais da sua obra, pois este livro é simplesmente fantástico.

A sua escrita simples, meio poética transporta-nos para uma pequena aldeia algures no meio da Polónia, onde se desenrola toda a história, cuja personagem principal é o Tempo.

Toda a obra circula através do Tempo, seja este momentâneo ou muito mais abrangente. É o Tempo de nascer, de crescer, de amadurecer, de envelhecer e de morrer.

São apresentadas três gerações através da personagem de Misía, desde que foi concebida, até à sua morte e paralelamente de todos os habitantes de Outrora e outras aldeias adjacentes que viveram na mesma época. O pai que partiu para a Grande Guerra (I Guerra Mundial) e voltou, a crise económica que se segui, a Segunda Grande Guerra com a invasão Nazi e posteriormente a ocupação russa e os tempos modernos com todas as suas alterações à vida desta pacata aldeia, à volta da qual tudo acontece.

No entanto Olga Tokarczuk vai mais longe, para ela também é o Tempo da vida dos rios que surgem como seres orgânicos integrantes da vida de Outrora, da floresta, das plantas e animais. Todos tem o seu tempo próprio de vida e de morte, até o moinho de café…

É um livro que nos leva a pensar na vida, naquilo que passamos ao longo de toda a nossa existência, as etapas que tempos de ultrapassar e seguir em frente, que nos leva a olhar a natureza como algo vivo e pulsante e ver a magia em todas as coisas simples que nos rodeia.

Filosofia, mitologia e muita prosa poética num livro que poderá ser para muitos um livro triste, mas que traz ao mesmo tempo uma esperança de que algo melhor poderá surgir depois da tempestade. 

Para ler com muita calma e com o tempo devido. 

Deixo-vos uma passagem do livro:

"Se olharmos atentamente para os objetos de olhos fechados para não nos deixarmos levar pelas aparências que as coisas espalham à sua volta , se nos dermos ao luxo de sentir alguma desconfiança, poderemos talvez ver, por um instante, a sua verdadeira face. 

As coisas são seres mergulhados numa outra realidade, onde não há nem tempo nem movimento. Nós vemos apenas a sua superfície, enquanto o resto, mergulhado algures, determina o sentido e o significado de todo e qualquer objecto material. Por exemplo um moinho de café.

Um moinho de café é um pedaço de matéria onde foi insuflada a ideia de moer.

Os moinhos de café moem e, por isso, existem. Mas ninguém sabe qual é o significado de um moinho de café. Aliás, ninguém sabe qual é o significado do que quer que seja. Talvez o moinho de café seja um fragmento de uma lei de mudança total e fundamental, de uma lei sem a qual este mundo não poderia sobreviver ou, então, seria completamente diferente. Talvez os moinhos de café sejam o eixo da realidade, em torno do qual tudo gira e evolui, talvez sejam mais importantes para o mundo do que as pessoas. Quem sabe se aquele moinho de café da Misia, único, não era o pilar da aldeia chamada Outrora ?"




segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Leituras e releituras de 2020 - um ano de descobertas e de matar saudades

 


2020 foi um ano um pouco diferente no que respeita às minhas leituras.  Muitos dirão que foi um ano completamente diferente em todas as situações, sem dúvida que o foi. 

Fomos invadidos por um vírus à  escala planetária, qual invasão alienígena  vinda de outro planeta em invisíveis naves espaciais . Alojou-se nos quatros canos do mundo e proliferou com uma rapidez que deixou o nosso planeta perplexo e devassado. Mudaram-se hábitos e rotinas e nada foi igual. 

Mas sem divagar, porque livros e leituras e outras folhas interessantes  são o tema deste  blogue, vamos ao que interessa: fazer uma  retrospectiva de 2020 no que toca às minhas leituras, uma vez que a minha preguiça, em comentar cada livro, tem sido grande (vamos ver se consigo reverter esta tendência durante este ano). 

Como já referi foi um ano diferente relativamente às minhas escolhas. Li e reli alguns livros na sequência de um projeto que estou a desenvolver em parceria com amigos fantásticos e que poderão acompanhar em   https://www.instagram.com/migalhas_de_letras/

Posso então começar por falar nas releituras que fiz ao longo do ano: "Chocolate" e "Sapatos de Rebuçado" da Joanne Harris; "O meu pé de laranja lima" de José Mauro de Vasconcelos; "Amor e Dedinhos de pé" de Henrique Senna Fernandes e "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça e outros contos" de Washington Irving. 

Foram livros agradáveis de serem relidos, agora com um objetivo especifico e por essa razão o foco incidiu sobretudo na procura de elementos que pudessem enriquecer o projeto que já mencionei. 

Há procura de algo doce, foi também a razão que me levou a pegar em 3 livros juvenis da autora Alice Vieira "Rosa, minha irmã Rosa", "Lote 12, 2º Frente" e "Chocolate à Chuva". São livros agradáveis, destinados a um publico muito próprio que relatam  um período de tempo da vida de Mariana. as suas atribulações com o nascimento da irmã mais nova, a morte da Avó, o inicio do 2º ciclo da escola, uma fase "terrivelmente" importante e a mudança de casa, a identidade do lugar e a sua ligação com a população. 

"Emma" de Jane Austen levou-me de novo ao mundo de Inglaterra do século XIX. Confesso que não sou uma fã da escritora, muito embora lhe reconheça o valor na caracterização da sociedade rural inglesa da época esmiuçando as suas vidas, desenvolvendo intrigas e romances, tendo sempre presente um certo humor e ironia nos diálogos dinâmicos que caracterizam a sua obra. 

Também pela mesma razão redescobri Eça de Queirós, um autor há muito sossegado na minha estante, mas que saiu de lá em grande força com "A cidade e as serras" e o "Mistério da Estrada de Sintra", este último escrito em parceria com Ramalho Ortigão. Dois livros muito diferentes mas dos quais gostei bastante. 

O primeiro conta a  vida de Jacinto, pelo seu amigo José Fernandes, em Paris, cidade que na época era considerada como o expoente máximo da civilização e modernidade. no entanto a pouco e  pouco, vamos conhecendo o ridículo e pretensiosismo que se encontra por debaixo da capa da superioridade dos parisienses. Jacinto acaba por se entediar da vida que leva e encontra-se  psicologicamente devastado, quando surge a necessidade de efectuar uma reparação na igreja da sua propriedade em terras lusas, mais propriamente em Tornes,  Jacinto viaja para Portugal e após uma série de peripécias, descobre o encanto das terras portuguesas. Um livro muito bem escrito, com muito humor e uma caracterização muito boa da sociedade da época. 

O "Mistério da Estrada de Sintra" é um pequeno livro policial, escrito a duas mãos, onde, através do envio de cartas anonimas a um jornal diário, se denuncia um crime. Por resposta a estas cartas, vamos assistindo ao desenrolar de todo o acontecimento em que se veem envolvidos os dois amigos que passavam, por acaso, na Estrada de Sintra  num belo fim de tarde. 

Ao nível da escrita nacional, li ainda um pequeno livro de contos (dez) de Manuel Alegre "O Homem do País Azul", publicada em 1989.  Um livro que se lê rapidamente e que nos oferece um conjunto de histórias ficcionais, mas em que podemos encontrar alguns laivos concordantes com as atribulações politicas e revolucionárias dos anos sessenta. O autor apresenta uma prosa em que se mistura uma realidade, talvez autobiográfica, com o enigma e por vezes com o fantástico.  Muito bem escrito, que mostra claramente a veia poética de Manuel Alegre. 

Há aqueles escritores que gostamos sempre de tornar a ler um livro da sua autoria e este ano não foi exceção. 

"As mulheres do meu pai" de José Eduardo Agualusa (que já comentei anteriormente no blogue) foi uma simpática viagem pelo mundo africano, uma obra que não me conquistou inteiramente, mas que se lê bem, pelo estilo a que o autor nos habitua, um final surpreendente e um excelente trabalho ao nível das personagens. 

"Goa ou o Guardião da Aurora" de Richard Zimler, começou por ser uma leitura onde pretendia pesquisar sabores gastronómicos cheios de cores e cheiros inebriantes que a India sabe bem proporcionar. Esta pesquisa saiu um pouco defraudada, mas a leitura foi muito boa. Mais uma vez o Universo da família Zarco, de raízes luso-judaicas, encontra-se presente na colónia portuguesa de Goa, no final do século XVI.  A perseguição que a Inquisição fazia na época tentando acabar com todas as crenças tradicionais, quer de nativos hindus, quer de emigrantes judeus.  Gostei bastante, como já é habitual nos livros de Richard Zimler.

Algumas leituras simples que não se podem dizer que são extraordinárias mas que conseguiram ter o seu papel de entretenimento. 

"As meninas dos Chocolate" e "As novas meninas dos chocolate" de  Annie Murray falam-nos da vida de três amigas (trabalhadoras na famosa fábrica Cadbury em Inglaterra). A sua vida podia ser simples e sem nada de relevante, no entanto a eclosão da Segunda Guerra Mundial vai transformar as suas vidas. 

"O Tecedor de Sonhos" de Trudi Canavan foi outra das leituras, logo no inicio do ano, que se revelou simpática e simples. É o segundo volume da "Idade dos Cinco" um livro de fantasia, onde os deuses e os povos entram em conflito e Auraya, a protagonista, tenta a sua conciliação. gostei da figura de tecedor de sonhos e das suas vantagens enquanto curandeiros. 

2020 foi igualmente um ano em voltei a participar em leituras conjuntas. Com dois bons amigos leitores,  efetuei três leituras, no ultimo semestre do ano.

José Luís Peixoto, um escritor que andava com vontade de ler, foi o mote inicial para estas leituras conjuntas, com "Uma casa na escuridão" . Não terá sido o melhor livro do autor para começar, pois trata-se de um livro bastante pesado, negro, que apresenta, sob a forma metafórica, uma ideia sobre o fim do mundo. Quando pensamos que nada pior poderá acontecer aos protagonistas, pois isso acontecerá mesmo. O que gostei mais foi mesmo a escrita, uma prosa extremamente poética que nos cativa e que nos leva a querer ler o livro do principio ao fim. Vou querer ler mais deste autor, sem dúvida. 

"Pessoas Normais" de Sally Rooney foi o segundo livro de leitura conjunta. Trata-se da história de dois jovens que se conhecem na escola. De personalidades bastantes distintas, ele mais extrovertido e ela mais introvertida acabam por se relacionar para além da amizade. O livro apresenta-nos o período de tempo entre a secundária e o pós universidade, os seus relacionamentos e os altos e baixos das suas vidas. Confesso que foi um livro que não me prendeu, não gostei do tema e acabei por o ler, sem que o seu desenvolvimento ou o final me cativasse. único aspecto positivo, do meu ponto de vista é claro, foi a escrita simples mas muito bem elaborada da autora. 

A terceira escolha da leitura conjunta recaiu em "Middlemarch" de George Eliot. Uma obra fantástica, que adorei ler em conjunto. É considerado o mais importante romance da época vitoriana. A autora  de nome Mary Ann Evan Cross, adoptou o pseudónimo de Geoge Eliot, porque seria mais fugir aos romances estereotipados como romances leves que as mulheres podiam escrever na época.  Neste livro  a escritora aborda um conjuntos de temas da vida rural inglesa na época, desde a arte, religião e politica, ao mesmo tempo que desenvolve magistralmente as personagens, o seu envolvimento na sociedade e as relações humanas.  Um narrador presente que participa activamente no desenvolvimento do livro e que comenta e opina sobre os acontecimentos, enquadrando-os na época e nos desenvolvimentos socio/políticos. Leitura fantástica. 

Do escritor Neil Gaiman li "Neverwhere - Na Terra do Nada"  que nos leva a uma Londres dividida em Londres-de-cima, munda da luz, e Londres-de-baixo, mundo das trevas. Após um acontecimento imprevisto, o protagonista acaba por ir parar a Londres-de-baixo e a "não existir" no seu mundo. Um livro muito característico deste autor que com a coexistência destes dois mundos cria um ambiente fantástico. Gostei bastante da leitura. 

Um livro emprestado por uma amiga, há muito prometido, deliciou-me e deixou-me uma  certa nostalgia, "Chuva e outras novelas" Somerset Maugham, um livro de pequenas histórias muito ao jeito do autor , onde este explora as personagens, a sua vertente psicológica, os sentimentos dando-lhe um realismo e uma profundidade extraordinária. Adoro a sua escrita, o seu estilo inglês muito próprio, a forma como descreve os cenários, a vivência, os sentimentos, as personagens que ganham vida própria  e se apresentam como o comum dos mortais da sua época. Muito bom.

"Memórias de um gato viajante" de Hiro Arikawa foi um livro que não resisti a comprá-lo assim que o vi. A narrativa desenvolve-se através de dois narradores, um na terceira pessoa que vai contando os acontecimentos e o desenvolvimento da viagem e e o outro na primeira pessoa, ou seja do ponto de vista do gato, onde este comenta sobre o relacionamento humano-gato. Um gato bastante observador e humorista, o que torna a narrativa divertida. ao inicio a escrita parece um pouco desmotivante, mas ao longo do livro vai ganhando força através das emoções e do desenvolvimento da relação do protagonista com o seu gato. Um livro bastante emotivo que nos leva a pensar sobre o valor humano e sobre o que estes felinos pensam e sentem em relação à alma humana, ao valor da amizade dono-gato.

Por último e não menos importante, antes pelo contrário, 2020 deu-me a conhecer uma personagem verdadeiramente fantástica.  Ela chegou pela mão de Lucy Maud Montgomery, no seu livro "Anne dos cabelos ruivos".  A história fala-nos de uma criança órfã que foi adotada por dois irmãos solteiros, de meia idade, Matthew e Marilla Cuthbert, que viviam numa quinta na Ilha do Principe Eduardo no Canadá. Tagarela, esperta, dramática e sobretudo muito imaginativa, Anne com os seus cabelos ruivos, vai alterar por completo a vida daqueles com quem vive e de toda a comunidade.  Várias peripécias engraçadas levam-nos a devorar o livro, criando uma amizade com esta personagem que perdurará para toda a vida.  Verdadeiramente fantástico.